9.3.06

 

Uma mulher muito especial

por marana borges

Milhares de pessoas marcharam ontem em todo o país lembrando o Dia Internacional da Mulher. Uma mulher muito especial, porém, não pôde ir às ruas de São Paulo porque estava no médico. Mas nem por isso deixa de lutar. Ana Rita de Paula possui síndrome de amiotrofia espinhal congênita e progressiva e parou de andar na primeira série. Há alguns anos suas dores aumentaram e a cadeira de rodas perdeu lugar para a cama, de onde presta consultorias ao poder público e organizações não governamentais. Hoje, aos 44 anos, ela já recebeu o Prêmio Direitos Humanos da Presidência da República (2004), o Prêmio USP de Direitos Humanos (2001) e o Prêmio da Revista Cláudia (2005) como mulher de maior destaque no país na categoria “políticas públicas”.

Ana trabalhou durante quase duas décadas na Secretaria Estadual da Saúde de São Paulo, implantando um programa pioneiro no Brasil de atenção à pessoa deficiente. Pioneiro também foi seu estudo sobre a condição feminina e a deficiência, desenvolvido no Instituto de Psicologia da USP em 1993. Se a deficiência já era (é) um estigma, levar à academia uma abordagem que contemplasse as relações de gênero foi um desafio ainda maior. Naquela época havia uma ou outra coisa sobre o tema nos Estados Unidos. Ao enxergar a situação da mulher deficiente com uma visão social e não meramente clínica (e, mesmo, masculina), Ana rompeu com a tradição acadêmica de então. “A mulher com deficiência sofre uma sobredeterminação de papéis desvalorizados”, diz. Ou seja, a condição feminina se agrega à deficiência como mais um fator de discriminação. As que possuem deficiência mental geralmente estudam durante menos anos do que homens com a mesma deficiência. Quando o problema é físico, não raro as mulheres recebem salários menores que o sexo oposto, ainda que exerçam as mesmas funções.

Ana fez psicoterapia durante muito tempo, até conseguir conviver com sua deficiência. Lidar com a experiência corporal nesses casos é sempre muito traumático. “Todas as ações que incidem sobre o corpo [cirurgias e processos de reabilitação] são no sentido de normalização, de consertar algo estragado. Tudo aponta para o lado negativo do corpo”, afirma a psicóloga. Sair da condição de objeto manipulável para ser um corpo desejado é particularmente difícil para as mulheres. “Elas sofrem ainda mais, pois o homem busca uma mulher-prêmio que tenha as formas do corpo ‘perfeitas’”. Encontrar um parceiro disposto a se relacionar com alguém que foge desse padrão de beleza é muito difícil. “A mulher que adquire uma deficiência (por exemplo, em um acidente) geralmente é abandonada pelo parceiro”, relata Ana. Em suas pesquisas e vivências, a psicóloga constatou que, ao contrário, quando é o homem quem adquire a deficiência, a mulher tende a permanecer e cuidar dele.

A ruptura da integralidade do corpo geralmente gera uma suspensão da própria história e um distanciamento do mundo. Nesse sentido, a vivência da maternidade ajuda também a restaurar o corpo. E aí entra outro tabu. “Há a idéia de que as mulheres deficientes não podem ter filhos, mas não existe deficiência que afete o sistema reprodutor”. Quando a lesão é medular há dificuldades para realizar o parto normal e a sensibilidade vaginal é comprometida. Em todos os casos, a deficiência coloca o desafio de (re)descobrir a sexualidade, o corpo, o erótico. Casada há 23 anos, Ana até hoje surpreende médicos mal-preparados. Para eles, vida sexual ativa é coisa de “gente normal, sem defeitos”.

“A sexualidade é a base da condição humana. Negá-la para uma pessoa é privá-la de sua humanidade”, pontua Ana. Novamente aqui as mulheres saem perdendo. Muitos pais de deficientes como que “recolhem” seus filhos do mundo com medo de que eles sofram muitas frustrações amorosas. No caso das mulheres, há sempre o receio de que, além disso, ela possa engravidar ou ser vítima de abusos sexuais. Assim, ela tende a ser mais isolada ainda. É um círculo vicioso: a sexualidade insere o deficiente na condição humana e na sociedade, mas, para ser plena, ela só é possível a partir de certo nível de inclusão. É no trabalho, na escola, nas festas que a oportunidade de formar parcerias acontece. Por isso Ana Rita defende, dentre outras políticas, a educação inclusiva e uma educação sexual que contemple as deficiências físicas e mentais.

Atualmente, em seu pós-doutoramento, ela estuda a criação de residências para pessoas com necessidades especiais, que deixariam de morar em instituições especializadas para ganhar maior autonomia. No lugar do isolamento, as relações entre os amigos e a comunidade seriam fortalecidas. Semelhante política foi implantada pelo governo federal em 2003 através do programa De Volta Para Casa, com foco em pessoas com transtornos mentais. [r]

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