4.4.06

 

pedaços do prestes

por daniela alarcon; fotos de daniela alarcon, leandro oliveira e crianças da ocupação

Ações artísticas e políticas convertem peça de especulação imobiliária em pulsante espaço público

Há algo de imponente na fachada do velho prédio, beleza madura de quem está ali há muito e já viu de tudo um pouco. Ainda que seu cinza encardido – o uniforme gelado que veste os prédios paulistanos – guarde semelhanças com as construções vizinhas, já na fachada ele é diferente. D-I-G-N-I-D-A-D-E, gritam as letras vermelhas nas placas diante do prédio. Não há como errar o endereço. Prestes Maia, 911.


Uma espiada da rua, e o interior deixa-se entrever. Colorido, iluminado e ruidoso, é quase um ímã, num entorno tão soturno (carros, carros, carros, passarela, prédios silenciosos, carros, carros). Diante da porta, noções como público e privado sofrem deslocamentos rápidos e confusos. Hesitação. Mas a placa é enfática e convida à entrada: “Visite a Biblioteca Prestes Maia”. Se o medo da reintegração coloca um vigia em que cada porta, o prédio se abre para todos que queiram conhecer as experiências desenvolvidas a poucos metros, sob o solo da avenida.

Transposta a porta de ferro, semi-aberta, e poucos lances de escada depois, a recepção é por conta de uma cara sorridente de José Serra estampada na parede. Junto ao agora ex-prefeito, estão representadas as empresas privadas e a polícia, em um esquema de “estética-especulação-exclusão” que bem podia substituir os tolos infográficos publicados nos jornais diariamente. A população de baixa renda e os trabalhadores informais são apenas citados no cartaz; ora, não precisam de uma figurinha que a eles aluda, ao menos, não ali. Basta olhar em volta: vencida a primeira coluna, estão por toda parte. Indivíduos que, no Prestes Maia, escaparam das engrenagens sinistras desnudadas no desenho.

Edifício ocupado, muito trabalho para que os ratos de verdade virassem ratos de desenho, coloridos nas paredes. A rampa que outrora serviu aos automóveis de sabe-se lá quem, é hoje cenário de brincadeiras das crianças; ao invés de vagas de garagem, o que se vê no subsolo do Prestes Maia são livros, lambe-lambes, instalações, grafites. Ali coexistem a Escola Popular Prestes Maia, o Cineclube homônimo, a Galeria Vitrine e a já famosa Biblioteca. Um “complexo de cultura”, como tornou-se moda dizer, encimado pela moradia de cerca de 2 mil pessoas.

Há três anos movimento popular e arte deram os braços na ocupação Prestes Maia. Artistas plásticos, arquitetos, jornalistas e quem mais quiser compõem a rede Integração Sem Posse. O grupo tem desenvolvido atividades junto aos moradores, e tenta chamar a atenção da população para a situação das 468 famílias ameaçadas.

A variedade de atividades faz inveja ao nosso gasto “mercado cultural”. Coexistência e simultaneidade dão o tom; difícil saber para onde dirigir o olhar quando há um sem número de obras ocupando cada canto do salão, se complementando e formando uma grande obra-única. O Cineclube, sempre aos sábados às 19 horas, exibe documentários. Na Biblioteca, livros tão díspares quanto “O complexo de Portnoy” e “Brasil: nunca mais” não se acanham em dividir as prateleiras, junto com cartilhas escolares e recortes de jornais. Oficinas temáticas, todas as noites, envolvem moradores e não-moradores. Debates, palestras, assembléias, música e festa. Assim mesmo: política e cultura, tudo sem distinção.

Espaço comum de vivência e exercício da cidadania, a Escola Popular, aberta no último sábado, dia 1°, movimentou os moradores do Prestes Maia e todos os envolvidos na luta contra a devolução do edifício a seus antigos e displicentes donos. Agrupados no tema Direito à Cidade, o geógrafo Aziz Ab´Saber, o professor de direito Pádua Fernandes e o escritor Bruno Zeni, apresentaram suas falas e discutiram com os presentes. Os palestrantes enfatizaram aspectos distintos do direito à moradia nas grandes cidades. Isso tudo ao som de risos das crianças, para quem o subsolo converteu-se em quintal, como observou Aziz.

Depois da palestra, um menino, pra quem o geógrafo deu uma prancheta de presente, sacou-lhe uma fotografia. Nada de formalismos. O mesmo menino, aliás, que seria autor de uma “ação direta”, junto aos amiguinhos, expropriando temporariamente minha câmera fotográfica para tirar retratos na Biblioteca.


Ocupação da ocupação (ou De quando São Paulo não foi a Cuba)

Via Prestes Maia, a rota Brasil-Cuba tornou-se bem mais curta no último mês.
Em __ de março, foi inaugurada a IX Bienal de Havana, reunindo artistas de 52 países. Suas obras, espalhadas por galerias, museus e espaços expositivos não-convencionais, agrupam-se sob o eixo temático Dinâmicas de Cultura Urbana. De acordo com o texto no sítio oficial da Bienal (http://www.bienalhabana.cult.cu), o propósito é “mostrar expressões distintas de vida e cultura relativas aos contextos urbanos, seus processos de confluência, hibridez, multiculturalidade e transformação”. A representação brasileira só perde para Cuba: além da delegação de onze artistas, treze coletivos foram convidados a compor a sala especial Território São Paulo, que seria montada em Havana.


Mas, para os cerca de 90 artistas dos 13 coletivos, a visita às terras de Fidel ficou para outra ocasião. Dificuldades logísticas à parte, algo ainda impedia o deslocamento dos trabalhos: o grupo temia a perda do vínculo com o contexto em que as obras foram gestadas. O traço comum entre os coletivos é a produção de uma arte devotada à compreensão do espaço urbano e das relações instauradas na metrópole. Contrariando uma tendência de universalizar tudo, benesses e males – “oh, a condição humana! esse rosto sofredor que é simplesmente o mesmo dos canaviais pernambucanos ao Turcomenistão...” –, os artistas fincaram pé na ligação de suas obras com uma realidade paulistana, circunscrita, tangível. E, por isso, alcançável e passível de transformação. Decorre daí a dificuldade conceitual envolvida na transposição.

E o que fizeram os artistas? Deixaram as malas de lado, e se instalaram no Prestes Maia. Como porta-voz, remeteram a Cuba um aparelho de fax, por meio do qual podem mandar informações da sala Território São Paulo, hoje abrigada bem ali ao lado da Biblioteca do seu Severino, na Galeria Vitrine. As “ações diretas”, além de evidenciar as contradições da metrópole, consistem em uma apropriação do espaço público. Pois as famílias do MSTC e os artistas do Território converteram, juntos, o subsolo do prédio em algo como o Espaço Público Prestes Maia. Colaram em cima da ordem de despejo o selo: duplamente ocupado.


Cada coletivo criou e dispôs suas obras como quis. O pé-direito alto e a extensão da área permitiram diferentes formas de aproveitamento do espaço.
Para a abertura da Galeria Vitrine, no último dia 27, o grupo Experiência Imersiva Ambiental (EIA) criou personagens, novos habitantes do edifício. O Baile dos Espantalhos reuniu moradores, artistas e figuras de trapo recém-costuradas. De acordo com Floriana Breyer, do EIA, todos os preparativos do baile foram coletivos: os bonecos surgiram de oficinas e os convites para a festa foram coloridos pelas crianças. Tudo organizado, o baile, cada um com seu par. Passada a festança, lá estão os espantalhos pendurados na fachada e no subsolo. Sua dupla-função é “encantar” e “espantar”, simbolicamente protegendo os moradores de quem os quer bem longe dali.


Formado há dois anos, o EIA está presente no Prestes Maia desde então. Em 2004, o grupo realizou o Salão de Placas Imobiliárias (SPLAC). Os anúncios de imóveis – esses que brotam vertiginosamente em cada cruzamento e aos quais a prefeitura faz vista grossa –, depois de sofrerem intervenções várias, foram parar no Prestes Maia.

Alguns anúncios como esses estão expostos hoje na Galeria Vitrine. A publicidade sucumbe debaixo de um lambe-lambe. Ainda se avistam o nome da construtora, endereço, data de entrega... porém, no centro do anúncio, onde estariam enumeradas as inumeráveis atribuições do edifício, o rótulo: “gentrificado”. E o que é isso? A própria obra dá a definição: gentrificação é o “processo de restauração e/ou melhoria de propriedade urbana deteriorada realizado pela classe média ou emergente geralmente resultando na remoção da população de baixa renda”. E onde vai parar a tal população de baixa renda? Contraste proposital ou não, meio que detrás da placa, vê-se uma grande fotografia em cores mostrando moradores de rua.

Ícones da metrópole povoam todo o espaço: o “Família [burguesa] muda-se” ganha o epíteto “Prestes Maia 468 famílias [que certamente não traziam sofás-vermelhos-fashion em sua mudança] morando”. Recorrendo à ironia (mais retratos de Serra sorridente) ou ao ataque direto (“Alckmin, Matarazzo, Hamuche vai tomar no”), as obras convergem para constatações semelhantes. “O Brasil não aceita pobre revolucionário”, como foi pichado numa das colunas.


Caminhando pelo subsolo do Prestes Maia não resta dúvida quanto ao acerto dos artistas em expor as obras ali mesmo. Com sorte, é possível fotografar uma das crianças bem diante de seu próprio retrato nas grandes fotografias que ocupam as paredes da Galeria. “Quem policia a polícia?”, estampado num pilar, não é uma abstração; basta olhar, numa parede oposta, a fotografia da ação policial durante a ocupação do Prestes Maia. Na seqüência, é só conversar com os moradores para saber quem apanhou onde. Isso para não falar na força da bandeira do MSTC rodeada de militantes. Ou ainda das crianças que aproveitaram grandes papéis (ex-futuros-lambe-lambes) para fazer uma cabaninha de brincadeira.


Anti-Edifício Master

Buscar o filho para viver junto a ela, em São Paulo. Ter uma casa à beira de um lago; com a pesca, a fome acabaria. Conseguir um trabalho, sustentar a família. Esses e outros desejos de alguns moradores do Prestes Maia estão estampados abaixo de seus retratos em uma estrutura iluminada que mimetiza o prédio ocupado. Se, por fora, no cinza lusco-fusco, todas as janelinhas são iguais, que os incautos não se enganem: atrás da cortina-fachada, estão rostos e fragmentos. Mas aqui não é a solidão pequeno-burguesa e a incomunicabilidade que dão o tom. Ainda que únicos, os rostos estão irmanados em uma causa: “Ocupar, resistir, construir e morar”. As famílias resistem. [r]


Território São Paulo
Galeria Vitrine (Av. Prestes Maia 911 – Estação da Luz)
De sexta a domingo, das 12h às 22h; até 30 de abril
Artistas: A Revolução não será televisionada, Bijari, Catadores de História, Cia Cachorra, C.O.B.A.I.A., Contra Filé, Coringa, EIA, Elefante, Esqueleto Coletivo, Frente 3 de Fevereiro, Mariano Klautau Filho, Nova Pasta, Trancarua.







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