17.5.06

 

sinais de sanidade: loucura nas ruas

por daniela alarcon e leandro oliveira
fotos por daniela alarcon

[Louco de alta tensão] [Ame a louca mente] [Sou, mas quem não é?] [A loucura está nos olhos de quem vê]

E muitos viram o pequeno grupo animado diante do prédio da Gazeta. A roda de samba, sempre de samba – ainda que as músicas escolhidas fossem ora dos Demônios da Garoa, ora de Raul Seixas, não podia ser descrita de outro modo: uma roda. A entrada e saída dos músicos, e a lógica imprevisível de seus instrumentos, não pareciam resultado de ensaios anteriores. Entrosamento que impedia a roda de parar.

“Essa gente é interessante”, riu uma mulher, desprezando o apelo direto das faixas. Eles ainda eram os outros. E ela, do alto de sua sanidade, prosseguia inabalada. Os que passavam, mesmo que sem a expressão de desdém, não consideravam unir-se à Parada do Orgulho Louco, criada como parte da Semana Anti-manicomial com o intuito de convidar a população a participar das discussões e da mobilização.






São 19 anos de luta anti-manicomial. Até 2001, a assistência a portadores de transtornos mentais era regida por um
decreto de 1934, que dispunha “sobre a assistência e proteção à pessoa e aos bens dos psicopatas”. Com a I Conferência Nacional de Saúde Mental e o II Congresso Nacional dos Trabalhadores da Saúde Mental, ambos de 1987, nasceu o movimento social anti-manicomial, e o dia 18 de maio foi escolhido como a data de luta. O objetivo é construir uma sociedade sem manicômios. Não se trata de desresponsabilizar o Estado e abandonar os doentes mentais, e sim de possibilitar a sua inserção na sociedade, associada ao tratamento sem internação.

Frente a uma legislação considerada retrógrada, foi proposto em 1989, pelo deputado federal Paulo Delgado, um projeto de lei que previa a interrupção de internações em hospitais psiquiátricos e a desativação progressiva, dentro de cinco anos, dos hospícios existentes. Com algumas alterações, o projeto foi aprovado em 2001. A
lei n° 10.206, que “dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental”.

Essa lei assegura direitos aos doentes mentais – direitos que o decreto, cujo foco são questões administrativas, não garante. Por exemplo: “ter direito à presença médica, em qualquer tempo, para esclarecer a necessidade ou não de sua hospitalização involuntária” ou “ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis”, entre outros.

Embora considerada um avanço, a legislação que substituiu o decreto não excluía a possibilidade da internação. Entre os problemas apontados pelo Fórum Paulista de Luta Anti-Manicomial estão a falta de clareza no artigo 4° (“a internação (...) só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes”), e o artigo 3°, que proíbe a internação em instituições asilares – ou seja, por tempo indeterminado – sem, contudo, levar em consideração a escassez de alternativas.

As instituições que representam uma alternativa aos hospitais psiquiátricos são os CAPS e NAPS (Centros e Núcleos de Apoio Psicossocial). Os pacientes que freqüentam esses espaços recebem acompanhamento psicológico e psiquiátrico, e participam de atividades como terapia ocupacional, psicodrama, oficinas de produção de texto e artes plásticas. O CAPS Itapeva, fundado em 1986, foi a primeira dessas instituições. A partir da
portaria n°224/92 do Ministério da Saúde e da NOB 96 (Norma de Orientação Básica, do SUS), a rede de CAPS e NAPS (Núcleos de Assistência Psicossocial) foi expandida para outros municípios brasileiros.






Gregório Carneiro
Gregório Carneiro
Gregório freqüenta o CAPS há cerca de quatro anos; de escrita, já são mais de trinta. Vestido para a festa, caminhava na Parada com seu livro recém-publicado debaixo do braço. Conversamos um pouco e ele logo mostrou seus poemas. “Quer comprar?” E antes que eu me adiantasse na caminhada, Gregório despediu-se com a estrofe de uma modinha: “Lambari tá pelejando / pra subir na cachoeira / Eu também tô pelejando / pra casar com a fazendeira”.

A Parada do último dia 13, levada a cabo sem patrocínio, foi um esboço do que se pretende realizar nos anos seguintes. Ainda que de pequenas proporções, reuniu membros do CAPS Itapeva e do Fórum de Luta Anti-manicomial. E onde a Paulista encontra a Pamplona, São Paulo encontrou Guarulhos: em sentido contrário, chegara um grupo do CAPS de Guarulhos, com poéticas faixas desenhadas e coloridas em papel craft. O encontro foi uma festa, que continuou no CAPS Itapeva.
Transposto o muro – onde fora gravado o aviso em stencil: morte ao ego –, todos que vieram pela primeira vez foram convidados a conhecer as dependências. Uma senhora sorridente trouxe o caderno de visitantes para que eu assinasse. “Onde eu consigo um adesivo desses?”. Antes que eu termine a frase, ela já colou o dela em meu peito: “Diversidade: inclua-se nessa causa”.

Em quase todas as salas há telas, esculturas e instalações. Seguindo os preceitos dos pioneiros Nise da Silveira, fundadora do Museu de Imagens do Inconsciente, e Osório Cesar que, desde os anos 20, estudou a expressão artística dos internos do Juquery, a produção artística dos pacientes é incentivada no CAPS. Este ano, somaram-se ainda obras de jovens artistas plásticos, com curadoria de Eric Frade, que ocuparam o segundo andar do sobrado. O propósito da mostra conjunta é estabelecer um diálogo e agregar diferentes setores da sociedade em torno das bandeiras anti-manicomiais.


O cupim está comendo a máquina anti-insanidade

Jornada nas Estrelas, de Cleuza Ferreira Souza, era para estar dentro de um aquário. No improviso, ganhou uma pequena fonte a seu lado e nada mais. O marido de Julia Katunda, psiquiatra do CAPS, recolheu umas sucatas que hoje compõem a obra de Tatiana Mayer: um manequim, bebedouros de passarinho, papéis e chapinhas de metal.

Como sintomas, as dificuldades do cotidiano no CAPS apontam para as deficiências na política pública de saúde mental no Estado de São Paulo. Julia enumera os problemas: centralização das decisões, gestão inadequada do orçamento, falta de continuidade dos projetos na área, baixos salários. Em tais condições, os funcionários, muitas vezes, apenas cumprem burocraticamente suas atribuições, e nada mais.

A rotina se altera, contudo, quando o paciente consegue envolver os funcionários, rompendo a barreira da apatia. Tatiana revelou seu talento, até então desconhecido, nas artes plásticas. Kalasan, sempre anti-social, hoje se sociabiliza por meio do violão e dos textos que produz. Convertem-se, dessa forma, em “agentes de terapia”. E todos – funcionários e pacientes – se engajam coletivamente em um projeto, driblando a falta de recursos.

Inspirado em Lygia Clark e Helio Oiticica, o grupo de artistas do CAPS havia planejado um caminho sensorial, perpassando a sala de exposição: aromas, sons e outros estímulos. A Pfizer comprometera-se a patrociná-lo, com uma doação; na hora do vamos ver, chegou apenas uma parcela ínfima do que fora acordado. Improvisaram, então, um caminho de madeira. Substitutas do caminho sensorial, as paredes de madeira não mais existem: foram comidas pelos cupins. Que ameaçam agora a obra de Paulo Sérgio Diniz Luz, Anti-insanidade, também em madeira.

Tatiana Mayer
Tatiana Mayer
Dois minutos que eu estou na sala, olhando a obra intitulada Salva-vidas infindus infinitus, quando Tatiana chega: “Você quer comprar essa máquina?”. Como eu titubeio na resposta, ela enumera as atribuições do aparelho, capaz de regenerar o ser humano – foi tudo arquitetado em detalhes, desde a cápsula onde o DNA é depositado, até os intrincados mecanismos curativos. Tão intrincados, que eu me admito aqui incapaz de reproduzi-los.

Tão pronto eu revelo a Tatiana que não tenho dinheiro para comprar um objeto tão valioso, ela se desinteressa de mim. Travestiu-se hoje de galerista: semblante tenso, preocupada não apenas com a venda de sua produção, como com a dos colegas: “Doutora Julia, ninguém até agora quis comprar os quadros? Nem a máquina?”. Se alguém manifestar interesse, ela deve ser avisada. E prossegue na ladainha da qual se ocuparia boa parte da tarde: “Quem quer comprar uma máquina? Um quadro?”


Um desperder de si

A máquina de Tatiana compõe-se de uma série de materiais, postos juntos, colados. Tal como seria um indivíduo psicótico, na metáfora de Julia. De acordo com ela, a psicose está no espaço da desorganização. “É um desperder de si. Você perde a lógica. Aí você vai grudando o que você encontra. São as pessoas esquisitas, são as pessoas que vêm grudadas”.

Chico Science tocando lá fora – desorganizando posso me organizar – faz eco nas palavras de Julia. Ela critica a reação da razão que, interditando a psicose, circunscreve-na ao campo da patologia, em oposição aos cânones da normalidade. A razão nega que possa haver outra forma de ser que não a hegemônica. Mas as peças ali expostas insistem na alteridade: a cabeça engaiolada, os corpos dançando nos desenhos, sexos floridos, esculturas lânguidas ou agônicas, gritos do corpo e da mente. Cada peça encerra em si uma narrativa a ser desvelada.

Shirley foi tomar um lanche e abandonou atrás de si um pequeno séquito. Corpos alongados e curvos, seios e barrigas, bocas entreabertas, as estatuetas femininas por ela esculpidas distribuíram-se em uma sala no segundo andar. Detrás de todas elas, posição de quem vela por essas mulheres tão absortas em seus próprios corpos, a mãe de Shirley ocupa uma cadeira. Tímida e silenciosa, dona Isaura quer se confundir com o barro frio. Mas vem prontamente conversar, disposta a contar as dificuldades de ter uma filha doente. Ou ainda, o prazer de poder dizer que, hoje, compreendida a doença e a forma de tratamento, é mãe de uma filha normal.

Vegetação Venérea, de René Rogério Pereira
Vegetação Venérea
Rose, por sua vez, é Rosilene Psique. A obra Vegetação Venérea, de René Rogério Pereira, contrapõe o corpo feminino ao prontuário médico de Rose. Peça de acesso restrito, por meio da qual o psiquiatra tem o poder de legislar sobre a vida do paciente, foi deixado às vistas de todos. Prontuário número 69, Rosilene, filha de Eros e Vênus. Escolaridade: orfanato e FEBEM. Múltiplos endereços (rua Augusta, rua Aurora, Cracolândia), é “terapeuta sexual”, de sexo “total” ou “indefinido”.

Encaminhada pela polícia, Rose recebeu tratamentos anteriores em casas de correção, FEBEM e conventos. E dentre os motivos da consulta, o principal: “delírio de que seu corpo seja a cura dos males do mundo”. Um poema escrito por ela, anexado ao prontuário, atua como recomendação de tratamento: “(...) Entre a overdose e o espasmo orgástico / entre as luvas de borracha, estetoscópio / e as coxas úmidas / escolha / A vegetação venérea / que fauna as ruas / e flora as casas (...)”.

Julia também produziu uma pintura, exposta na parede oposta a Jornada nas Estrelas. Posa para foto, junto a sua obra, e pede que eu mencione seus outros nomes na reportagem. Ingênua: “É seu nome artístico?”. “Não, são meus nomes psicóticos”. Expressão de dúvida. “Eu fiz uma adesão à psicose”, explica-me. Pois Julia Katunda é também JK Rolando, que assina o quadro, e é ainda Julia de Garcia.
Para bailar la bamba no aparelho de som; o dia frio mas ensolarado. A festa da rua Itapeva vai longe. Duas mulheres – a do esmalte amarelo e sorriso cândido; a da blusa amarela e sorriso sedutor – estão dançando na porta do CAPS. Julia bem que me dissera, invertendo a perspectiva corrente, que se a porta do hospício está aberta, é porque a loucura está na rua.




[Viva a loucura ávida de vida]




Salva-vidas infindus infinitus, de Tatiana MayerSalva-vidas infindus infinitus, de Tatiana Mayer Salva-vidas infindus infinitus, de Tatiana Mayer


Exposição dos Novos Artistas
Gaiola Espacial, de Raimundo da Cruz Cordeiro; ao fundo: Voto, de JK Rolando1. Exposição dos Novos Artistas 2. Quadro em exposição no CAPS Itapeva 3. Gaiola Espacial, de Raimundo da Cruz Cordeiro; ao fundo: Voto, de JK Rolando





A Semana de Luta Anti-manicomial estende-se entre 9 e 26 de maio, com atividades previstas em diferentes pontos da cidade. Os debates – no Instituto de Psicologia da USP e na PUC – são entremeados por apresentações artísticas, música e feira anti-manicomial. Serão ocupados o vão livre do MASP, a praça da República e a praça Benedito Calixto, em Pinheiros; na Virada Cultural, um coral cênico se apresenta em apoio à luta anti-manicomial. E uma programação paralela acontece no Centro de Convivência e Cooperativa São Domingos, na zona sul de São Paulo. Mais informações sobre a programação no site http://brasil.indymedia.org/pt/blue/2006/05/353034.shtml.


Fontes:
Jornal de psicologia – CRP SP
Revista Comciência

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16.5.06

 

hora de repensar a pobreza,
não de radicalizar a truculência

por tadeu breda

Acabaram-se os atentados do Primeiro Comando da Capital (PCC) na cidade de São Paulo. Os jornais apontam uma média de 215 ataques e 115 mortes em todo o Estado. Até cidades normalmente calmas e com baixa incidência de crimes tiveram ônibus queimados, bancos, viaturas e bases da PM metralhadas. Isso sem contar as rebeliões – 80 –, com 13 vítimas.

Medo era o sentimento reinante entre os moradores da Capital na segunda-feira, 15 de maio. Apesar de o último ataque criminoso – uma viatura da Polícia Civil alvejada no bairro de Higienópolis – ter ocorrido por volta do meio-dia e as rebeliões terem chegado ao fim durante a tarde, escolas e universidades fecharam as portas, empresas e lojas dispensaram seus funcionários mais cedo.

A pressa para chegar em casa – aparentemente o único lugar seguro – fez com que o caos tomasse conta do já insuportável trânsito da cidade. Os ônibus eram poucos (nenhum empresário queria mais prejuízos), táxis, disputados entre os que podiam pagar. Às cinco da tarde, veículos abarrotaram as principais vias paulistanas causando aproximadamente 190 quilômetros de congestionamento, quatro vezes mais que o normal para o horário. Algum tempo depois, perto das onze da noite, as ruas estavam vazias.

Houve muito boato. Foram as notícias falsas, aliás, que alimentaram a sensação de insegurança, que causou medo, que causou pânico, que desembocou em histeria. Hoje, um dia depois, as coisas já parecem estar operando como de costume. Só as bases e quartéis da PM e da Polícia Civil, além do Corpo de Bombeiros, que permanecem atentas, com bloqueios e homens montando guarda.

Tudo voltou ao normal?

Poderíamos dizer a vida voltou ao normal, mas seria errôneo. Agora, mais do que nunca, todos os paulistas (e todos os brasileiros) podemos ter noção do ponto a que chegou a criminalidade – organizada, poderosa, sem qualquer respeito ao Estado ou às forças de segurança.

É hora de todos os cidadãos começarem a se preocupar coletivamente com a situação. Não adianta nada ser acometido por uma tentação revanchista e reclamar o recrudescimento da PM (que já é truculenta demais), leis mais severas, pena de morte, enfim, de nada adianta botar a Rota na rua, matar bandido (“porque tem que morrer mesmo”) e mandar os direitos humanos pro beleléu.

Não. O caminho é exatamente outro. Os ataques do último fim-de-semana são um alerta, um indicativo de que, se o Estado e os atores sociais não começarem a se preocupar de forma verdadeira e comprometida com a população pobre, sem paternalismo ou assistencialismo ongueiro, chegaremos a uma situação insustentável, ao aumento indiscriminado da violência e da guerra particular entre criminosos e policiais pelo controle das ruas – com prejuízos todos eles para a população.

Os atentados foram uma demonstração de poder da bandidagem, mas não só. A destruição de bancos – setor que vem lucrando bilhões nos últimos anos – é um indicativo nítido de que a pobreza rompeu as barreiras da favela para resolver as diferenças sociais na bala. Os integrantes do PCC mostraram um desprezo imenso pelo sistema que alimenta o ciclo de miséria em que o país se meteu e do qual não tem vontade de sair. O Estado também se mostra ausente na periferia, dando as caras somente na figura repressiva da polícia.

Fora com a radicalização

O momento, portanto, não é de radicalização, mas de reflexão. A periferia não agüenta mais tanto descaso, tanto abandono, tanta opressão. O PCC só é a face mais cruel de todo esse descontentamento. Não adianta mais escondermos a luta de classes, o profundo abismo que separa os poucos ricos e a classe-média da imensidão pobre do país. Não podemos mais ficar nos lixando pros que passam fome, porque mais cedo ou mais tarde a criminalidade junta abastados e desgraçados pelas esquinas.

Chega de intolerância. A onda agora é respeitar e construir, de uma vez por todas, um estado de bem-estar social, democrático de fato, capaz de diluir a desigualdade. Os ricos não podem continuar tão ricos, os pobres não devem continuar tão pobres. Se reformas sérias e profundas não vierem, se nossa estrutura social injusta não for mexida, a saída será uma revolução. Não uma revolução popular, política, com o povo nas ruas reivindicando uma vida melhor, mas uma revolução pautada pelo crime, de ruas vazias, armada e deletéria. O apelo aos governantes está feito: eles podem fazer a mudança pacificamente ou deixar que a façam violentamente. Mas que ela virá, virá – ou alguém duvida da força do PCC? [r]

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o governo paulista investe nesse tipo de empresa...

por rafael sampaio


A charge é copyleft de autoria de Gilberto Maringoni, para a Agência Carta Maior - http://www.cartamaior.com.br

O PCC tem uma estrutura hierárquica, que leva ao recrutamento quase automático de seus membros endividados - os "Bin Ladens". Sua complexa organização é fruto do investimento que o governo estadual fez na segurança pública e no sistema penitenciário, visando fortalecer a repressão e o policiamento ostensivo. Criou um monstro popular nos presídios paulistas.

O PCC é diferente do Comando Vermelho, na medida em que não atua exclusivamente com o tráfico e o contrabando, e não está centrado em nenhuma favela nem morro específico. A estrutura da organização criminosa paulista assemelha-se a de um partido fanático, que tem até estatuto próprio e que prega a "liberdade, justiça e paz" aos presos do estado. Pior: em tempos de combate, o PCC assumiu faceta de uma guerrilha urbana, nos moldes das milícias muçulmanas mas sem o radicalismo religioso.


As bases de operação do PCC são as penitenciárias. Com a pulverização dos presos pelas pequenas cidades do interior do estado, o governo prestou um serviço ao PCC, já que levou à sua disseminação em praticamente todo o território paulista. Não duvido que novos núcleos do PCC venham a se formar, depois destas rebeliões. A população dessas cidades, onde o policiamento é frágil e o poder do governo estadual é quase nulo, deve começar a se acostumar com novos atentados. Onde antes havia o marasmo das cidades interioranas, agora pode haver terror num breve futuro.


Sobrou, na capital do estado, uma sensação etérea de insegurança, uma paranóia generalizada. A raiva e o medo tomam de assalto o coração das pessoas, e estas afloram em sentimentos radicais. Ouvi, num mesmo dia, pessoas defendendo a pena de morte, a supressão de direitos individuais, a diminuição da maioridade penal, o incremento da pena nos presídios em mais 30 anos além do permitido...

Passou da hora de agir como um povo civilizado. No dia depois do terror, o que se vê nos jornais são políticos fazendo um jogo eleitoral rasteiro. Discutem se o problema da segurança pública é federal ou estadual. Mas que raios! Será que uma solução conjunta não é possível?! Será que a Polícia Militar não pode agir no estrito senso da lei? Para quê fizemos a Constituição de 1988 então?!

Em tempo: li um artigo sobre pesquisa do "Atlas da Desigualdade Social", elaborado pelo economista Márcio Pochmann, que registra um aumento de 11% da desigualdade social em toda a população nacional, de 1980 a 2000. E depois ainda querem resolver o problema dos pobres com bala, paulada e cadeia. [r]

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15.5.06

 

o jogo começou, aperte start (ou não)

por fábio brandt

Ataques a delegacias, policiais mortos, tiroteios pela cidade, ônibus incendiados. Pânico e revolta da população. Essa é a situação extrema em que se encontra a cidade de São Paulo. Claro que nem todas as partes da metrópole foram (pelo menos, por enquanto) palco da guerra urbana travada entre bandidos e policiais, nem todas as pessoas presenciaram as cenas do conflito. Neste ponto, é importante lembrar daqueles agentes responsáveis por transmitir as informações indispensáveis para a vida das pessoas. Sim, os jornalistas.

Através dos jornais, soube que os ataques dos bandidos foram iniciados em represália a uma tentativa da polícia de neutralizar as ações de quase 800 dos mais perigosos bandidos ligados ao PCC. Paralelamente a este motivo, alguns outros também foram apresentados, afinal de contas é um conjunto de fatos que faz a situação atingir as proporções que tomou e não uma razão isolada. Os bandidos também queriam reaver as televisões que adquiriram para ver a Copa do Mundo na cadeia e queriam poder sair da prisão no dia das mães -exigências que o governo se negou a atender.

Cobertura Holywoodiana

Não fosse pela minha própria constatação da situação trágica em que se encontra São Paulo, eu pensaria que algum descendente de Orson Welles virou assessor de imprensa e plantou esta pauta-pegadinha na grande mídia. A situação é colocada como se a Quadrilha da Morte, Dick Vigarista, Lex Lutor, Pingüim e companhia não-limitada de vilões tivessem feito conchavo para atacar a metrópole.

O trânsito está bagunçado, o metrô está um caos, os ônibus não circulam normalmente. Só falta os semáforos piscarem luzes azuis, os hidrantes dispararem jatos de água e o dirigível da Goodyear emitir a voz de um chefão do crime anunciando o domínio da mente das pessoas.

Talvez essa minha impressão seja por conta de meu doentio imaginário de leitor de ficção. Mas o que é ficção? Os livros de Huxley e Asimov ou a grande imprensa brasileira? Acho que não entendi ainda qual a relação entre a espetacularização da vida e melhores relatos jornalísticos - deve ser uma das lições que ainda não tive, por enquanto só sou estudante de jornalismo.

O fato é que não se abre mão de promover o espetáculo da guerra urbana. Quadros ilustrativos, estatísticas, perfis de policiais e bandidos, ilustrações do aparato bélico usado e do que ainda pode ser posto em prática. Tudo apresentado como num filme do Van Dame ou do Chuck Norris, ou como num jogo de Playstation 2, que torna a imagem da ficção muito próxima da imagem do real.

Mas é assim, eu já deveria saber. Um fato extraordinário deve ser representado de maneira correspondente, destacando-se dos outros assuntos. Essa lição eu já devia ter aprendido, pois sou da geração que passou a adolescência servida pela mídia pós-onzedesetembro.

Sempre tinha uma edição da Veja para eu ver durante o início da guerra do Iraque. Na sala do colegial, acompanhávamos semanalmente a ficha técnica e as ilustrações em 3D dos equipamentos bélicos dos americanos. O poder de guerra dos EUA impressionava qualquer um, chegava a ser uma ótima diversão imaginar aqueles aviões e tanques em ação, como nos filmes que crescemos vendo. Do lado iraquiano, a revista publicava a foto de gente na miséria, gente ferida. Diferente da imagem dos yankees, essa não impressionava encantando, ela chocava dando dó, pena, raiva. Num vídeo game, qual dos dois personagens você escolheria para jogar?

Maniqueísmo facilitador

Sim, dois personagens. A mídia constituiu na época da guerra do Iraque dois lados, um pelo bem e outro pelo mal, seguindo uma linha dualista na qual um pólo não interage com seu oposto, nem por ocuparem o mesmo espaço nem por um influenciar a existência do outro. O mesmo ocorre na cobertura da guerra urbana, de um lado os homens maus - os integrantes do PCC, mercenários, seqüestradores, ladrões e congêneros - e, de outro, os defensores da população e do aparato de Estado - os policiais e os governantes.

Os relatos não incluem a elucidação dos fatos. A complexa interação entre problemas e atores sociais é deixada de lado ao se reduzir, maniqueisticamente, a realidade. Como o crime organizado se desenvolveu nas costas da recriminação dos movimentos sociais pelos governos oficiais não é uma questão abordada pelos jornalistas nesta cobertura. Como o crime organizado se mantém garantido pela corrupção dos políticos e da polícia também não é nem questionado. Talvez fosse necessário pensar que os dois lados estão muito mais próximos, e mais interligados do que parece.

No máximo, a legislação e o Estado de direito são questionados como as raízes profundas do problema. Defende-se a ação em regime de exceção, para extermínio dos integrantes do PCC. Pronto, essa é a solução - pelo menos até uma nova guerra começar. Faz-se pressão sobre o legislativo para que "medidas eficientes" sejam aprovadas - como o aumento do tempo das penas e a redução da maioridade penal - o que, por si só, diminuiria a criminalidade.

Faz-se de tudo para a população alinhar-se ao governo e endossar as políticas emergenciais conduzidas exatamente pelas mesmas pessoas que há anos ignoram a possibilidade de um caos social. Garantir a segurança da população compreende muito mais do que a polícia vencer os bandidos. Trata-se da formulação e aplicação de políticas públicas integradas, relevando-se as particularidades de cada parte do espaço heterogêneo da cidade e da demanda por mudanças dos diferentes grupos sociais, cada qual com suas particularidades.

Pensar o problema como resultado da interação dos diversos atores sociais pode ser um começo para se visualizar a questão em sua ampla complexidade e não reduzi-la a personagens de vídeo-game disponibilizados pela mídia.

A cidade tem uma dinâmica complexa, que até pode ser representada com uma linguagem simples e clara, como pretende fazer o jornalismo. Mas, simplificar mudando a realidade implica distorcer informações e não contribuir para a resolução dos problemas profundos da metrópole. [r]

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assim caminhará a sociedade?

por renato brandão

São Paulo foi o palco de mais uma série de ações ousadas do Primeiro Comando da Capital (PCC).
Centenas de ataques foram realizados da última sexta-feira até a noite de domingo, em diversas cidades do Estado, mas concentrados principalmente na capital. Guardadas as proporções, não é um exagero afimar que a metrópole paulista teve um final de semana de "Baghdad" - cidade iraquiana que convive diariamente com a violência pós-queda de Saddam Hussein. O saldo da violência traz dezenas de mortos, entre forças de segurança, civis e suspeitos dos atos, delegacias, postos policiais e edifícios públicos atacados, ônibus e bancos incendiados e numerosas rebeliões, com cerca de uma centena de reféns. As altas autoridades do governo e da Secretaria da Segurança Pública (SSP-SP) consideraram que a série de ataques veio em resposta à decisão do governo estadual de transferir lideranças das facções criminosas para a penitenciária de Presidente Venceslau (Oeste do Estado).

Em meio a poucas atitudes concretas do Estado, a idéia de desarticular as principais lideranças das quadrilhas de criminosos é positiva. Beira o absurdo que, mesmo presos, os chefes das organizações criminosas consigam articular rebeliões, ações coordenadas e surpreendentes como a dos últimos dias e, principalmente, comandar seus negócios ilegais, como o narcotráfico.

Quem mora na cidade, obviamente, acompanha atentamente as últimas notícias com um certo grau de apreensão e indignação contra os ataques do PCC às forças de segurança pública, que "tem papel fundamental no Estado Democrático de Direito", segundo nota oficial do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo (OAB-SP), Luiz Flávio Borges D'Urso. Recusando
auxílio do governo federal (o que caracteriza a politização eleitoral de um caso acima de partidarismos), a SSP-SP e o governo estadual esforçam-se em afirmar que a situação está sob controle, em meio a um estado de pânico da população. O sentimento geral é de comoção com a onda de violência generalizada e as mortes de policiais, que, idealisticamente, devem zelar pela "defesa" da população, embora saibamos que a função primordial da polícia é a manutenção de uma ordem, seja ela qual for (no nosso caso democrática, mas repleta de injustiças). Ainda que a polícia seja "o que a sociedade quer que ela seja", nas palavras do ex-delegado carioca Hélio Luz, não se justifica matar policiais.

Mas a questão fundamental nesta história é pouco considerada. Todas aquelas ações do PCC estão relacionadas à problemática geral da segurança e a violência social, portanto não são mais que reflexos da realidade injusta deste país. O PCC é um resíduo de nossa realidade social excludente, e este é o verdadeiro cerne da questão. Vítima dos crimes, a sociedade civil tem sua parcela de responsabilidade geral, considerando-se que somos parte da mesma sociedade desigual. Atribui-se todo o peso das decisões ao poder público, como se nossa única obrigação cívica fosse escolher "representantes" a cada dois anos.

Parte da culpa recai sobre a sociedade civil pelo simples fato de que não é somente o Estado que deve estar a frente dos processos decisórios. Sim, ele é o protagonista, mas temos também nossa parcela de responsabilidade, desde o voto até o descaso com nossas mazelas sociais. Não é culpa apenas de governos "x" e "y" a existência de tantos problemas, mas de todo o tecido social, nos quais convivem ricos, médios e pobres, brancos, mestiços e negros, religiosos e não-religiosos, incluídos e excluídos. As conseqüências de nossa tolerância, indiferença e comodismo, que se expressam também diante de várias outras questões sociais, são as piores possíveis: aumento de crimes como seqüestros, assaltos e assassinatos. É muito claro que a violência está intimamente ligada à falta de justiça neste país. Só não vê quem não quer, só não muda quem não quer mudar.

Quanto ao Estado, sua maior responsabilidade é em não criar condições mais dignas para o grosso da população: as camadas pobres e os excluídos do sistema. O que o Estado tem feito muito bem é a manutenção de uma ordem social injusta. A conseqüência destas políticas nefastas só não geram uma implosão social, porque a rede judiciária-policial fazem o controle social
, precário, mas ainda suficiente para intimidar os mais pobres. Até as paredes das mansões dos Jardins (bairro nobre da capital paulista) sabem que o sistema penal brasileiro foi feito para os pobres! O Estado amedronta as classes mais desfavorecidas. Por sua vez, estas não se revoltam e aceitam, no seus limites, a ordem social desigual, uma vez que acreditarem na legalidade, na democracia e que um dia este país será mais justo. Mas o Estado não mais atemoriza o crime organizado, que vem explorando o medo da população e os pontos fracos do próprio Estado, desafiando-o com táticas similares às máfias italianas e aos grupos terroristas como Al Qaeda.

Infelizmente, o que se acompanha através da mídia é uma pronta resposta maniqueísta, transmitida pelos setores mais conservadores da sociedade civil, apoiados pelo pânico geral de uma população amedrontada e sedenta por "sangue" contra "os bandidos". Mais uma vez, as ações recentes do PCC são figuradas pela dialética do "bem" versus "mal", dos "policiais" versus "bandidos", dos "cidadãos de bem" versus "os do mal"... Os pecados são imputados unicamente aos "bandidos", desprezando-se a complexidade da realidade, embora está seja bem nítida. O discurso do bem versus mal não é utilizado por acaso. Serve tanto para camuflar a realidade mais complexa - e que, para mudar, requer medidas que podem contrariar interesses de grupos poderosos -, como também explicar de modo simplista a população, que diante de clima de indignação, apoiaria medidas de endurecimento e repressão, mesmo que violem direitos elementares dos indivíduos e a legalidade constitucional.

A culpa é dos Direitos Humanos

E críticas e mais críticas aos "Direitos Humanos", aos quais os grupos mais reacionários atribuem a grande culpa pelas ações dos criminosos. Estes setores, muito influentes na teia social, responsabilizam os "Direitos Humanos", ou seja, suas políticas, pelos crimes na sociedade, já que os DHs "protegeriam os bandidos" de uma punição rígida e "merecida".

É curioso que são nos países mais desenvolvidos do mundo que os DHs estão bem mais consolidados, as disparidades sociais são muito menores e a qualidade de vida é mais digna. Resumindo, os direitos humanos são parte essencial dessas sociedades, consideradas mais justas.

No Brasil, a conotação para Direitos Humanos é usada muitas vezes de modo equivocado - especialmente pelos grupos mais conservadores -, já que são um dos principais movimentos organizados na sociedade civil a constrangerem e contestarem as arbitrariedades sociais, econômicas, jurídicas... Não é surpresa que os mais interessados em atacar os DHs são também os maiores defensores do status quo dominante.

A realidade em que vivemos é mais complexa do que uma batalha de bem ou mal - infelizmente é forte o discurso dos setores sociais que insistem em lidar com a coisa como se fosse aquela brincadeira de nossa infância, o polícia-e-ladrão. O Estado deve ter firmeza, sim, contra o crime organizado. Afinal, a sensação de impunidade estimula ações ousadas de criminosos. O que se enfrenta é um inimigo ágil, com ações imprevisíveis, aos moldes de grupos mafiosos e terroristas. Neste aspecto, o Estado já sai em desvantagem, por falta de coordenação geral de seus serviços de inteligência.

Mas o enfrentamento contra as quadrilhas não é o bastante, é apenas a ponta do iceberg. As medidas mais eficazes para o desestímulo da vida no crime não são de caráter jurídico-policial - ou melhor, somente nestes campos. É óbvio que são mais urgentes medidas de caráter criminal, dentro do Estado de Direito, contra as organizações criminosas. Mas se estas não vierem em conjunto com outras ações urgentes (futuras e de longo prazo) no campo socioeconômico, que visem a redução da exclusão social neste país, a criminalidade e a violência continuarão a ser a ponta-de-lança do caos social que aflige a sociedade civil. Pior ainda: arregimentarão novos adeptos, prontos a se engajarem no mundo fora-da-lei. Afinal, ser criminoso é uma opção de vida em uma sociedade tão cruel quanto a nossa (já dizia o cientista político Hélio Jaguaribe que o "Brasil tem um exército de reserva do narcotráfico"), em que as forças de segurança são mal pagas e muitos de seus funcionários acabam seduzidos pela corrupção. [r]

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