17.4.06

 

a bicada dos tucanos

por rafael sampaio

Eu devo a este blog uma resenha do último livro do Frei Betto, “A Mosca Azul”. Há um mês, exatamente, prometi que escreveria, quando o livro foi publicado na Bienal. Fiz, inclusive, uma entrevista com o autor. No entanto, a rotina me impediu. Fui “atropelado” pelo dia-a-dia na Agência Carta Maior. Aproveito para fazer aqui meu mea culpa e me redimir, como um bom cristão diante de um "religioso-revolucionário" que é o Frei Betto (mal-humorado, é verdade...).

A "Mosca Azul" é uma metáfora para os que se deixam seduzir pelo poder, são "picados" pelo deslumbramento e pela ganância. Levando em conta que a esquerda deslumbrada pelo poder, durante o período pós-ditadura foi o PSDB, formulei a hipótese de que a tal "mosca" fosse, na verdade, um animal mais emplumado e dotado de bico: um tucano.
A resposta dada pelo Frei Betto a essa pergunta está no fim do artigo. Devo sublinhar que as pessoas que querem entender um pouco a situação pela qual passa o PT devem ler o livro do frade, não só para conhecer a história de sua vida. Mas porque a militância de Frei Betto começou vinte anos antes de Lula.

Quem é
O autor de “A Mosca Azul” foi testemunha do movimento político nascente depois de 1964. Ele enfrentou momentos difíceis na prisão durante a ditadura militar, colaborou com a ALN (Ação Libertadora Nacional), percorreu um longo caminho no marxismo ortodoxo até chegar ao contato direto com o povo para se transformar num dos mais destacados militantes dos movimentos sociais brasileiros, nos anos 80 e 90.

Frei Betto se tornou um pilar teórico dentro de uma linha de esquerda que não se preocupa em ser ultra-radical-marxista, mas cuja proposta está em fazer a mudança a partir “da base”, a partir dos trabalhadores. Essa mesma base de trabalhadores da qual Lula, hoje, parece distante.

O frade é um “paradigma” da esquerda que abandonou o discurso vazio para atuar politicamente na realidade. Não a partir do assalto ao Estado, como às vezes pareceu conveniente. Mas a partir da formação cidadã, da exigência dos direitos, das campanhas salariais, do convencimento da opinião pública. Penso que este “paradigma da prática” dissociado do discurso está carregado de ingenuidade, já que o público, por exemplo, troca de opinião como se trocasse de roupa, e não é fácil convencê-lo. Tudo pode ruir como um castelo de cartas (não foi o que aconteceu com o PT?).

Mas nessa atuação real, na mobilização do dia-a-dia que privilegia a prática, reside a maior força dessa esquerda, da esquerda do PT. Daí surgiu o movimento sindical e a CUT; a militância agrário-religiosa com as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e o MST; a militância estudantil e a retomada da UNE. Betto faz questão de sublinhar que a social-democracia não está no espectro do PT: “esta é uma opção política que outros partidos, ditos de elite, já preencheram. O PT não tem futuro fora do mundo dos pobres”, acredita o frade.

Uma descoberta que me pareceu incrível: as CEBs foram criadas pelo Frei Betto. Ele conta, no livro, o tempo que viveu em uma favela e como a organização das CEBs colaborou com a construção do PT. “Hoje elas não chamam mais a atenção da mídia como na década de 1980; ninguém mais espera que as CEBs façam a revolução, como esperavam, durante a Revolução Sandinista”, ressalva o frade. Ele, aliás, conta muito no livro sobre os encontros com o padre Ernesto Cardenal, outro expoente da Teologia da Libertação e ex-ministro da Cultura do governo sandinista. Frei Betto se contrapõe ao dito padre, como se o nicaragüense pertencesse à geração do “discurso vazio” e o brasileiro houvesse evoluído, atingido a “prática necessária”.

Voltando para as CEBS: quando reflito sobre essas comunidades, me parece que elas atingiram, outrora, muitas áreas no interior do país. Lembro-me de uma recente viagem ao Sertão da Bahia que fiz, mais precisamente a Canudos (uma cidadezinha perdida onde há mais de cem anos ocorreu uma guerra sangrenta), na qual o único padre da cidade era adepto ferrenho da Teologia da Libertação. Lembro de ter lido sobre a trajetória de Chico Mendes, o seringueiro de Xapuri (vila no interior do Acre). Sua vida e a da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, estão marcadas profundamente pelas CEBs.

Perguntei a ele sobre as diferenças sobre a organização popular no campo e na cidade. Frei Betto acha que “o camponês é mais disciplinado e não tem alternativa a não ser trabalhar na terra. Já na cidade, a gama de opções para o povo inclui o trabalho informal, a indústria, o comércio e até a miséria”. Betto acha que a UNE está enfraquecida; “ela é dirigida por um pequeno grupo político que não representa a vontade de todos os estudantes”.

Esquizofrenia
O livro de Frei Betto é uma análise lúcida sobre o que é política e como ela se faz para a esquerda. Mas há um quê de esquizofrenia, porque o autor discute filosofia, retrocede em seu passado, explica o que é o PT, fala sobre a crise política e retoma a filosofia a todo instante. Um vai-e-volta.

Não espere uma organização sistemática dos temas. O leitor da “Mosca Azul” deve, antes, absorver o fluxo de pensamento do Frei, o que não é difícil. Sem desmerecer em nada a obra, eu diria que há um truque para fazer o leitor refletir sobre seus grandes temas, como o poder popular na América Latina, movimentos antiglobalização, neoliberalismo, privatizações etc: o truque consiste em fazer o leitor acreditar que a crise política do PT dá o tom da obra. O truque consiste em falar que há gente podre no PT e que “o poder corrompe”, mas não explicar quem, quando e por quê foi corrompido.



“A cúpula do PT expulsou parlamentares por questões
políticas. Mas só vi um membro do Diretório Nacional
expulso por questões éticas”, lamenta Frei Betto


Isso é extremamente frustrante. O autor infelizmente não aponta saídas para a grande crise que vive a esquerda brasileira, já que o principal paradigma contemporâneo para os que crêem em mudanças sociais radicais - o Partido dos Trabalhadores - se rompeu.

O Frei age como o Politburo petista age: como se o problema não fosse com ele. Apesar do nome, Carlos Alberto Libânio Christo não parece disposto a se sacrificar pelos pecados alheios. Há, sim, muita retórica em torno da necessidade de expurgar os maus-elementos do partido. Sobram ataques velados ao ex-ministro Antônio Palocci.

Transcrevi uma frase do livro, com algumas alterações, para torná-la clara: “Me pergunto se o líder petista [Luis Inácio Lula da Silva] queria mesmo a construção de uma sociedade socialista, como apregoou na 1º Convenção Nacional do Partido, ou se demonstrou condescendência à minha posição. A dúvida acentuou-se quando, na Presidência da república, o presidente declarou em público que nunca fora de esquerda e evitou promover reformas de estruturas, como a fundiária. Ora, o poder não muda as pessoas, faz com que manifestem a verdadeira face” (página 96).

Libânio parece certo de que pode fazer os companheiros de partido ainda “não-corrompidos” acordarem para o “desvio de projeto político” dos que chegaram ao poder. E repete, em várias passagens, que se afastou de seu cargo no governo federal – do qual participou, como um dos principais coordenadores do programa Fome Zero – antes que o escândalo do “mensalão” viesse à tona. Na página 121, Frei Betto resume toda sua tese sobre o governo: “um pequeno núcleo dirigente do PT conseguiu em poucos anos o que a direita não obteve em décadas, nem nos anos sombrios da ditadura: a desmoralização da esquerda”.

Mais humilhante para o partido do que a exposição diária na mídia é a falta de rigor com que são tratados os corruptos. “A cúpula decidiu expulsar vários parlamentares importantes por questões políticas. Mas até agora só vi um membro do Diretório Nacional saindo do PT por questões éticas”. Ainda assim, Frei Betto acha que a correlação de forças dentro da esquerda não está em disputa. “O PSOL não é significativo, é um partido pequeno e irrelevante”, diz ele, como que subestimando o apelo que a sigla têm adquirido com os líderes de movimentos sociais e sindicatos.

Frei Betto usa a metáfora da travessia para discursar sobre o desvio de conduta do PT. “Dei-me conta de que navegávamos para oeste [direita], quando todos os planos orientavam-nos a leste [esquerda]”, ele explica, como se quisesse saltar do barco “socialista” em que se metera. A fé do frade dominicano, como um “sentido-aranha” de personagem de história em quadrinhos, apontou que aquele não era o rumo certo. Então ele fez o que devia: abandonou o navio e “nadou para a terceira margem do rio, esgueirando-se de piranhas e jacarés em busca de si mesmo”,em alusão ao conto de João Guimarães Rosa.


“O livro começou a ser escrito logo que cheguei ao Planalto”, diz Betto. Como escritor experiente, ele repensa, relê e lapida o texto. Eu o questionei sobre o título e as cores da capa, que para mim adquiriram um significado especial antes da leitura do livro. Pareceu-me uma espécie de mensagem cifrada, anunciando um PT que se rendeu a um tipo de prática política similar à do PSDB. O azul e o amarelo das letras “a mosca azul” me evocaram os tucanos, na hora.

Porém, para minha frustração, o Frei fez questão de se esquivar. “A carapuça da mosca azul serve para muita gente e o leitor apreende o que quer. Sou o menos indicado para analisar as entrelinhas”, justificou, sem querer se comprometer.

Ele, no entanto, faz questão de sublinhar que há polarização entre o PT e o PSDB e que ela não deveria se refletir apenas no discurso. “Os tucanos são de centro-direita. A grande contradição do governo é manter a política econômica igual à deles”, explica o Frei. Para ele, manter as bandeiras da esquerda, mobilizar as massas e lutar pela construção das opiniões críticas na sociedade é o que mantém o PT vivo. “Sem isso, viveremos uma eterna esquizofrenia”, lamenta Libânio Christo.[r]

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