4.3.07

 

e eu calei

por daniela alarcon (de la paz, bolívia); foto Wikipedia Quéchua


Potosí (em quéchua P'utuqsi, ou ruído) foi a cidade mais rica do mundo. Ali jaz o cume vermelho que, séculos e séculos, pariu riquezas para as latitudes mais ao norte de seu cerro rico. Umbigo inchado de prata, estanho. O chão da casa da moeda tem pegadas em baixo relevo, tal era a forca para cunhar a martelo uma moeda que se ia oceano afora.

Contos, há muitos – e estão longe de ser desinteressantes. Há o das senhoras donas de minas e seus faustosos jantares, há aquele do ano em que substituíram todos os paralelepípedos por barras de prata para a procissão passar. Mas eu não posso narrá-los.

Perdi a língua quando me engasgaram os gases que cospe a mina - foram quatro dias para meu suor deixar de vomitar enxofre.

Foi lá dentro que um homem me apertou a mão, e já não era humana essa mão que me agarrava. Tive ganas de fugir e de fato puxei minha mão presa entre as mãos do ex-homem. Ex-homem! Sua coca na boca, seu diabo adiante. Eu perdi o resto de virgindade que guardavam meus olhos (Foi há duas semanas. Meu nariz tem feridas por dentro e sangra a intervalos quase regulares).

Uma senhora de La Paz me dizia hoje, justamente, sobre o labor do jornalista: "hay que vivir con la gente y hay que contar sus historias". Me instava ternamente a fazer o que no mundo me dá mais prazer. E meu medo é o silencio em que incorro e esse desviar de assunto, mais que deliberado.

Por que não conto que dez anos é uma boa idade para ingressar na mina, como auxiliar em uma cooperativa? Por que não grito que há um menino que se chama Basilio, mineiro de 14 anos, cuja mãe tem de sobreviver com 25 dólares mensais? Talvez porque o restaurante em que jantei hoje custasse, vejamos, o salário mensal que essa quéchua tem para si e seus três filhos? Ou talvez por que arranquei minha mão quando o que mais devia era tragar aquela mão e aquele corpo pútrido de silicose.

A língua está grudada no céu da boca. Mas eu chego ao Brasil e a desgrudo, nem que seja à faca. Porque se há que gritar. Falam de oito milhões de mortos, na "montanha que engole gente".[r]

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