28.4.06

 

o bêbado e a letargia do povo

por tadeu breda

Era sábado, sete horas da manhã. Não costumo estar de pé neste dia neste horário, mas desta vez entrava no metrô, com destino a um dos terminais rodoviários de São Paulo. Queria passar o fim de semana fora da cidade, de saco cheio que estava com suas contradições. Tinha um ônibus saindo pra mim dali meia hora. Estava atrasado.

Na plataforma, a sonolência parecia ser unânime. Todos com os olhos mais fechados que abertos, com a cabeça mais na cama do que no trabalho. Foi quando desceu pela escada rolante um cidadão batucando as placas de alumínio da estrutura, cantando palavras desconexas. Deitou-se no chão e ficou falando pro mundo até o trem chegar.

Não fiz a menor questão de aguçar os ouvidos pra escutá-lo. Aquele senhor de 40-50 anos estava nitidamente alcoolizado e, como é de praxe, logo pensei que não se prestaria a outra coisa que não encher a paciência dos outros. Era muito cedo pra agüentar com bom humor os efeitos da bebedeira alheia, resolvi procurar um vagão mais pra lá.

Meu problema estava aparentemente resolvido. Viagens tranqüilas são mais que perfeitas quando se está com sono. Foi que tive de mudar de linha, passar de um trem pra outro. Entro noutro vagão e percebo: com seus batuques – agora transmutados em pancadas – e frases agora perfeitamente inteligíveis, estava ele quase a meu lado.

O tiozão estava alcoolizado como qualquer tiozão alcoolizado. Os efeitos do álcool é que não eram, digamos, tradicionais. Não era um bêbado qualquer, com atitudes quaisquer. Ele não escolheria nenhum passageiro pra ficar atazanando, fazendo amizade. Era um bêbado diferente, politizado – um tiozão bêbado revolucionário.

– O povo tem que lutar, senão os estrangeiros vão tomar conta de tudo, vão dominar o país – gritava. A exaltação durou uns cinco minutos. – Há muito tempo o brasileiro perdeu a noção de pátria!

Pregação política? Às sete horas da manhã? Num sábado? Já estava pensando que ia ter de agüentar um bêbado se lamentando da vida, mas o cara estava mandando um discurso ali mesmo, sem se importar com nada, como se tivesse plena consciência de que sua contestação era necessária. Viva a revolução!

E falou um bocado: que não podíamos mais aceitar as coisas de cabeça baixa, que tínhamos de nos levantar contra as arbitrariedades do governo, das elites, das empresas estrangeiras, enfim. Depois começou a chorar. Feito criança. Dava pra ver que estava amargurado mesmo, triste até, deprimido com esse mundo cada vez mais estranho e confuso. E enquanto chorava, balbuciava a música mais famosa de Geraldo Vandré:

Caminhando e cantando e seguindo a canção,
Somos todos iguais, braços dados ou não...

Sentado, cantou só um pouquinho. Depois de um tempo, voltou a romper o silêncio. Percebeu um torcedor do Corinthians bem na sua frente, com jaqueta e gorro do time, e mandou:

– É isso aí, torce pro Corinthians e esquece da burguesia! Torce pro Corinthians e esquece de fazer faculdade! É isso aí. Timão, ê-ô! Timão, ê-ô!

Mas, não sei, acho que pouca gente, como eu, viu beleza no ato. Senão beleza, o quão interessante foi aquilo em dias como os de hoje, de marasmo coletivo. Fiquei pensando que política causa mesmo ojeriza ou desprezo ou risos na maioria da população. Uma galera de 20 e poucos anos, que parecia se conhecer, caía na gargalhada com as traquinagens do tiozão bêbado. E bastou ele sair do vagão para se ouvir um "Cachaça é dose..." É, é dose. Pena que não faz isso com todos os bêbados.

Atrasados pro trabalho, correndo pra não perder o ônibus, com sono demais pra prestar atenção nas coisas... cada um ali tinha uma justificativa na ponta da língua pra não dar bola pro tiozão ou ignorar o que ele falava. É triste, mas o povo parece estar sempre ocupado demais pra se preocupar com palavras e atitudes que dizem respeito ao seu próprio futuro. [r]

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25.4.06

 

a febem, o pátio, a secretaria... e a justiça?

por renato brandão

Eram 10 horas da manhã no Pátio do Colégio (centro de São Paulo). Véspera do feriado de Tiradentes e o sítio histórico da capital paulista recebia, como de costume, alunos do Ensino Fundamental e Médio. As crianças faziam bagunça e barulho, mas quando os monitores falavam de Anchieta ou dos povos indígenas, a maioria delas prestava atenção. Outras se distraíam com o movimento de veículos e pessoas, com os velhos prédios ou com o ‘impostômetro’, instalado na sede da ACSP (Associação Comercial de São Paulo), na Rua Boa Vista, que indicava até aquele momento por volta de 234 bilhões de reais em impostos pagos em 2006 à União. Sem dúvida, uma quantia significativa...

Enquanto isso, na mesma praça, algumas dezenas de pessoas ajudavam a amontoar dúzias de bonecos de papelão em frente à Secretaria de Justiça do Estado de São Paulo. Outras portavam cartazes com dizeres contra violência do Estado contra menores da Febem (Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor). Todas estas pessoas, reunidas a outras centenas, aguardavam o início de um ato público pelo fim da tortura e da violência na instituição que completa 30 anos no dia 26 de abril. Entre a Secretaria e os manifestantes, uma fita de isolamento amarela e preta. E meia dúzia de policiais militares de prontidão.

O protesto, iniciado por volta das 11 horas da última quinta-feira, foi organizado por entidades de direitos civis como a Amar (Associação de Mães e Amigos de Crianças e Adolescentes em Risco), a Conectas Direitos Humanos e o MNDH (Movimento Nacional de Direitos Humanos). Além de ativistas de direitos humanos e parlamentares, o ato contou com a presença ex-internos e parentes de internos (presos ou mortos), a grande maioria dos presentes.


O ato teve início com um discurso do coordenador estadual do MNDH, o advogado Ariel de Castro Alves. “Estes bonecos de papelão simbolizam os jovens mortos e torturados”, disse. Em seu discurso, Ariel criticou a administração de Berenice Gianella, presidente da Febem, e pediu seu afastamento. “É a gestão mais autoritária que enfrentamos. Ela não quer nenhum diálogo com as entidades de direitos civis, e o pior é que a cada rebelião ela coloca a culpa nos movimentos de direitos humanos”. Ele acusou Berenice de querer implementar “o sistema penal juvenil” nas unidades da Febem. “As estruturas atuais são mini-presídios, réplicas de Centros de Detenções do Estado”, reclamou Ariel, que afirmou que não é permitida a inspeção das unidades pelas entidades de DH, exceção a do Tatuapé, graças a uma determinação da Corte Interamericana Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos).

Outra que discursou indignada foi a presidente da Amar, Conceição Paganele. “Queremos o cumprimento do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) e o fim da violência contra os menores, representados pelos bonecos”. Ela também condenou a impunidade reinante para os violadores de DH e foi mais incisiva com a gestão de Berenice Gianella.

Parentes de vítimas desta violência também fizeram discursos no início da tarde.

Manifestante pela primeira vez

Empunhando cartazes, muitos parentes compareceram ao ato público contra a violência na Febem. Muitos participavam de uma manifestação pela primeira vez. Não escolheram, esperavam e queriam que essa “primeira vez” fosse por esta razão.


Uma destas ‘estreantes’ é Raimunda Maria da Silva, 69 anos, moradora de Itaquera (Zona Leste paulistana). “É a primeira vez que venho”, contou ela, que veio protestar pelo neto de 18 anos, preso na Unidade do Tatuapé. “Estou aqui para dar um grito de alerta. Este rapaz [o neto] não aprende nada por lá. O que vai ser dele?”, lamentava, afirmando que seu neto, ao invés de “estudos”, é maltratado por funcionários da entidade. “Os internos não recebem cursos, recreação e atenção. São mantidos presos como bichos”, declarou dona Raimunda, que visita o neto a cada 15 dias.

Busca solitária por Justiça

A maioria dos parentes de ex-internos presentes no ato público em frente à Secretaria de Justiça era composta por mães. Nos rostos dos familiares, olhos marejados e silêncio doloroso. Poucas conseguiam falar sobre seus filhos mortos.


“Só Deus me dá forças”, consolava-se Solange de Moura Queiroz, 39, mãe de Sidney, 18, encontrado com queimaduras na Unidade Tatuapé e dado como morto após duas semanas na UTI. Segundo a versão da Febem, Sidney ateou fogo ao próprio corpo. Mas Solange duvida desta versão. “Meu filho morreu por uma discussão com os funcionários. Ele estava nervoso. Uma enfermeira deu sedativo e ele foi para a sala descansar”, explicou. Depois de alguns minutos, Sidney foi encontrado em chamas por dois outros adolescentes, que pediram socorro. Mas Solange disse que não houve ajuda, já que os funcionários “ficaram rindo” da cena. As desconfianças da mãe de Sidney são maiores porque o rapaz teve queimaduras “do tronco até a linha da cintura”, mas não na “parte de baixo nem nas costas”.

O caso foi arquivado, mas Solange busca justiça, mesmo que lute sozinha. Neste ano, ela começou a estudar em um cursinho pré-vestibular, para conseguir uma vaga em Direito. Sidney chegou a dar depoimentos na Justiça denunciando maus tratos na Febem. “Tem até uma carta dele na Justiça relatando tudo”, disse.

O jovem ficou pouco mais de ano internado. A primeira passagem foi por envolvimento com narcóticos. Foi a própria Solange quem o enviou para a Febem, acreditando que o filho pudesse ser reeducado “Não sabia como era. Eles não educam ninguém. Estão transformando os meninos em bandidos, assassinos”. Após quatro meses, Sidney saiu. Mas 21 dias depois, ele cometeu outro delito, desta vez assalto à mão armada. Foi sua sentença de morte.

Solange criticou o sistema ao qual os jovens são submetidos. “Eles ficam meses sem fazer nada ou trancados”. Para ela, a solução seria a criação de unidades menores, para um número menor de internos. “É mais fácil reeducar dezenas do que centenas de meninos”. A atual presidente da Febem também é criticada. “Ela está no lugar errado, Ela deveria continuar no sistema penitenciário”.

A dor de Solange é maior porque Sidney sairia em breve da Febem. “Ele estava feliz e com planos. A psicóloga tinha avisado que ele estava saindo”, lembrava a mãe. “A primeira coisa que ele queria após sair de lá era um mousse de maracujá e uma carne. O que eu não esperava era morte dele”.

Além desta mágoa, Solange ainda convive com o poderoso preconceito social contra os menores da Febem. “Tem gente que passa por mim e diz: ‘Tem que morrer todos!’. Sinto pena, porque quem diz isso não imagina que seu filho poderia estar lá na Febem”. Para ela, a sociedade “precisa pensar que, se os menores forem tratados como animais, eles ficarão ainda mais revoltados”.

Mesmo com os olhos um pouco cansados, ela passou o tempo discursando para os presentes e concedendo entrevistas a jornalistas. Fiquei até constrangido por tantas perguntas, mas Dona Solange foi gentil e respondeu a todas pacientemente. Agradeci. Ela retribuiu com um sorriso e seguiu, em direção a caixa de som, com a luta por justiça na Febem e para o filho.


Recomeço com flores e preconceito

Os discursos continuavam. Solange e Edi, outra mãe cujo filho foi morto dentro da Febem (ver entrevista abaixo), já tinham expressado sua indignação. Ariel e Conceição falaram mais uma vez. Acontecia uma apresentação de caratê, dos meninos atendidos por um projeto da Amar na Cidade Tiradentes, bairro carente da capital. Uma roda se formou em torno deles, mas algumas pessoas estavam um pouco dispersas. Enquanto isso, dois jovens distribuíam flores de papel para os manifestantes no evento no Pátio do Colégio ou transeuntes que apertavam os passos. Um deles me oferece uma. “Já tenho, obrigado”, disse a ele. “Pode levar duas, não tem problema. Toma”, sorriu o jovem. Antes que fossem embora, os interrompi para ter minha última conversa no lugar.


Um pouco acanhados, aceitaram a pequena entrevista. “Estamos aqui para lutar por aqueles que não podem estar aqui", disse João (na verdade, D., 16), em referência aos milhares de menores mantidos presos na Febem, pela qual teve uma passagem de cerca de um ano. A garota que distribuía floras com ele era Daniela, (M., 16), também ex-interna da Febem.

Neste período detido, João relata ter aprendido muitas coisas. Como o quê? “Que a violência não educa, só gera mais violência”, disparou. E por aí, teceu mais críticas generalizadas ao tratamento dado por funcionários aos internos.Para João, muitos jovens acabam na Febem por falta de oportunidades na vida. “Daí, você vê um tênis em uma loja, mas não pode comprar. Isso leva muitos ao desespero, para o ‘caminho errado’”, disse o rapaz, morador de Parelheiros (Zona Sul paulistana).

A experiência na Febem mudou João. Após sair do “inferno”, ele começa a tocar sua vida para frente e cultiva seus sonhos, direitos elementares, expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. “Quero voltar aos estudos [artigo 26] e arrumar um trabalho [artigo 23]”. Por enquanto, ele não obteve sucesso. “Está difícil, mas eu não quero voltar para aquele mundo de jeito nenhum.” Falou, ainda esperançoso, que conta com o apoio da mãe, que tem mais nove filhos.

Além das dificuldades comuns aos jovens da periferia enfrentadas por João, ele ainda sofre preconceito pela sua passagem pela Febem. Isso o revolta bastante. “Queria ver uma pessoa defender [tortura ou morte para os internos] se um filho dela estivesse lá”. É nesta sociedade que ele recomeça sua vida. Ele convive diariamente com as diferenças de oportunidades entre os seus indivíduos. Ele resiste calado, por enquanto. Até quando?

Bexigas pretas

O encerramento do ato aconteceu com a leitura de nomes dos 27 adolescentes mortos na Febem, desde março de 2003, segundo levantamento da Amar. Os manifestantes fizeram um minuto de silêncio ao meio-dia, quando a igreja do Pátio bateu seus sinos. Depois, os organizadores distribuíram cercas de 300 balões brancos e 27 pretos – estes, simbolizando os internos mortos – para o público. Aquele que recebi, constava uma tira de papel com os dizeres: C.L.S 22/01/2004.


Ao som de batucadas e “pedidos a Cristo” para que a ‘justiça divina’ inspire a ‘dos homens’, as bexigas foram soltas, aos poucos, subiam em direção ao céu. A pedido dos policiais militares presentes, o barulho dos tambores foi cessado, já que o padre havia alegado que o som alto atrapalhava a cerimônia em homenagem ao jurista Miguel Reale, morto na semana anterior. De fato, o sacerdote da Igreja do Pátio do Colégio já tivera uma furiosa discussão com manifestantes, uma hora antes, reclamando do ato. [r]

fotos. tadeu breda

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24.4.06

 

a febem, suas mortes e desrespeitos

entrevista a leonardo amaral, tadeu breda e joão peres
edição e introdução por joão peres

O reverso começa agora uma série de reportagens sobre a Febem (Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor) de São Paulo. A primeira delas, que vem publicada logo abaixo, é o relato de uma mãe que perdeu seu filho na instituição (foram 27 adolescentes mortos dentro das unidades nos últimos três anos).

Depois, as histórias de um funcionário e de pessoas que trabalham na defesa dos menores e suas famílias. São apenas alguns exemplos que ilustram a triste história da fundação criada em 1973 e que tem em seus arquivos incontáveis mortes e casos tristes de desrespeito aos diretos humanos e a tratados internacionais. Uma instituição que aprofunda os problemas de internos que deveriam estar lá para educação. Atualmente, cerca de 35% dos ex-internos cometem delitos na vida adulta.

Após as primeiras transferências de menores para presídios, durante o governo Alckmin, grupos como o PCC (Primeiro Comando da Capital) conseguiram entrar na Febem, aprofundando as mazelas de uma instituição já tão problemática. Hoje, vários funcionários têm que pagar para ingressarem nas unidades em que trabalham.

A Febem é uma das mais problemáticas instituições brasileiras e a única do Estado de São Paulo que teve seu caso enviado à Corte Interamericana de Direitos Humanos, ligada à Organização dos Estados Americanos (OEA). São as mais graves violações ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), criado na década de 90 e jamais respeitado na fundação.

***

Eduardo Oliveira de Souza tinha 16 anos quando foi internado, em 25 de dezembro de 2004. Durante a madrugada do dia de Natal, em Santo André, região metropolitana de São Paulo, ele e dois colegas cometeram alguns delitos. Primeiro, roubaram um carro e, como ninguém sabia dirigir, acabaram batendo. Depois, abordaram um casal e furtaram outro veículo. Ao avistarem uma viatura da polícia, se assustaram, começaram a correr e foram detidos depois de alguns tiros dos policiais.

Após seis dias no 1o Distrito Policial de Santo André, os menores foram transferidos para a Unidade de Internação Provisória (UIP) número Nove do Complexo Tatuapé da Febem, onde esperaram por julgamento até o dia 27 de janeiro. A juíza recomendou que Eduardo ficasse detido de seis meses a três anos.

“O Eduardo ficou lá na UIP-9 até o dia seis de fevereiro. Foi no dia seis de fevereiro que surgiu uma vaga e transferiram ele para a UIP-4”, conta Edi Oliveira Silva, mãe de Eduardo.

“Eu sei que lá ele ficou até o dia 12 de março, num sábado. Eu visitei ele pela manhã, e conversamos muito, ele disse que queria logo sair de lá. E eu até já tinha ido na quinta-feira, que foi dia 10, tinha tido uma rebelião lá no Tatuapé, invadiram a quatro, e aí eu fui lá no fórum e expliquei que meu filho estava lá, e não estava tendo uma escola, não tinha um curso, não tinha nada. Os meninos abandonados lá, tem dia que nem funcionário tinha.”

A advogada responsável pelo caso recomendou a Dona Edi que pedisse à técnica de Eduardo um relatório pedindo a desinternação.

“Visitei o Eduardo no sábado (12/03/05), conversei com ele, expliquei que ia pedir o relatório na segunda pra técnica. Liguei pra técnica dele e expliquei que precisava que ela fizesse um relatório, já que lá ele não tava estudando, não tava fazendo nada, pelo menos aqui ele trabalhava e ficava em casa, né?”

“Aí, eu falei com ela n segunda, pedi o relatório, ela falou que tudo bem, que tava uma bagunça, né, porque tinha tido uma rebelião na quinta, mas ela ia fazer um relatório. E eu perguntei:

- ‘E o Eduardo?’
E ela falou:
- ‘Ah, tá tudo bem, o Eduardo está aqui, ele é um menino calmo’.”

Não estava. No dia 16, quatro dias depois da rebelião, o irmão de Dona Edi é avisado pela Febem de que Eduardo havia fugido no dia doze.

“Não tinha dado um telefonema, não tinha dado um sinal de vida, nada. Aí, eu entrei em desespero. No dia 17, eu fui lá pro Tatuapé e conversei com a técnica dele e falei:
- ‘Cláudia, mas falei com você na segunda e você disse que meu filho tava aqui e que tava bem. Agora, você vem falar que meu filho fugiu no sábado à noite?’
- ‘É, mãe, porque aqui tá uma bagunça, um menino fala que é um, outro fala que é outro, então...’ ”

Dona Edi começou então uma longa busca.

“Eu não aceitei essa hipótese de que meu filho fugiu. Uma porque o Eduardo não era bandido. Ele fez coisa errada, mas tinha a casa dele, ele não precisava disso. Vida de pobre, mas ele tinha o trabalho dele, comprava as coisas dele, tinha o que ele queria, né? Só que foi pela cabeça dos outros. Então, eu falei, ‘não, não vou aceitar isso’. Meu filho tem que aparecer, ninguém some assim do nada. Mesmo se tivesse chegado até um orelhão, se tivesse a chance de chegar a um orelhão, tinha ligado”.

E sem ajuda da Febem...

“Que era pra eu procurar uma delegacia, procurar o IML, né, a família que procurasse. Então, como meu filho trabalhava e só tinha eu, o pai dele não mora mais aqui, comecei a procurar”.

“Meu fim de semana era para ir em pronto-socorro. IML das Clínicas acho que eu passei umas quatro vezes, o povo já até me conhecia. Arthur Alvim, Itaquera, Zona Sul, Santo André, São Bernardo, tudo que você pensar. Eu tinha esperança, porque tantos IMLs que eu ia, tantos eu voltava a segunda vez, e eles não tinham encontrado nada. Talvez meu filho estivesse vivo, né?”

No dia 19 de julho, quatro meses depois, Dona Edi resolveu ir até o IML de Franco da Rocha, pois tinham dito que muitos casos iam pra lá.

“Eu falei: ‘bom, se eu já procurei na região de São Paulo toda, quase todos IMLs dessa região eu conheço e nada’. Aí, eu peguei e fui pra Franco da Rocha”. Dei as características dele, e ele tinha feito uma tatuagem dum coringa aqui na perna. Um palhacinho”.

O registro de Eduardo foi encontrado no arquivo das pessoas enterradas como indigentes. O corpo foi encontrado na manhã do dia 13 de março, às onze e trinta da manhã, por um cobrador de ônibus na Estrada da Servidão, em Mairiporã.

“Ele foi muito espancado, tava muito machucado, tinha corte aqui no pescoço, tinha tiro aqui no nariz, tiro na cabeça, mais tiro aqui e tiro aqui (nuca e peito). Aí, o delegado lá de Mairiporã falou que a informação é de que havia sido espancado e que ele tinha sido morto, executado ali”.

“Pelo que me informaram lá, o tipo de crime, nas condições que ele foi assassinado, me falaram que foi polícia”.

Segundo os relatos feitos a Dona Edi, a fuga foi forçada por alguns funcionários.
“Dizem que o Eduardo saiu também correndo e, desde que eles começaram a correr para fora da unidade da Febem, já tinha tiro, e eram tiros de verdade. Eles correram pra uma favelinha que tem ali de frente do Tatuapé”.

Dona Edi não acredita na versão de que Eduardo fugiu.

“O Eduardo sabia que logo ia sair da Febem, porque eu já estava indo atrás. Ele falou:
- Mãe, pra que eu vou fugir? Se eu fugir e me pegarem, minha pena vai dobrar. E eu tenho que andar fugido, né, porque toda hora tô na rua e a polícia pega. Não, eu vou esperar. A senhora vai atrás, vê o que a senhora pode fazer pra mim. Se eu sair, tudo bem. Se eu não sair, fico aí oito meses, talvez seis meses ou um ano”.

“Ou ele fugiu obrigado, ou ele não fugiu, foi espancado lá dentro e a hora que viram que o caso dele... porque a morte dele foi espancamento, perfuração de alguns órgãos, porque bateram nele, e traumatismo craniano”.

Dona Edi entrou na Justiça para tentar apurar o que aconteceu na noite de doze de março de 2005, mas, até agora, ninguém foi punido.

“A pessoa comete uma infração. Você tem lá a punição pra ir pagar, né, no caso ele tava lá interno pra cumprir, pra pagar o que tinha feito de errado. Agora, não se tem segurança nenhuma, não se zela pela integridade física do menor e, pensa, meu filho morreu e não é problema da Febem, não é problema de ninguém. E de quem é o problema? Nessa, meu filho não vai voltar mais”.

Quando completou 16 anos e concluiu o primeiro grau, Eduardo quis arrumar um emprego para ganhar “o próprio dinheiro”. Trabalhava em uma empresa especializada em entrega de panfletos.

Na Febem, fez pequenas esculturas de origami em papel sulfite (o material era levado pelas mães). [r]

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23.4.06

 

pra que pensar, se a direção da une faz isso por nós?

por vinícius furuie

Insólito. Pois a luz branca do projetor exibe teses políticas, a mesa narra o processo de votação enquanto massas de estudantes gritam uns contra os outros sem se ouvir. Faixas propagandeiam que o candidato favorito da juventude do PMDB é o Itamar Franco e que libertar o Brasil é construir o socialismo. Ao ouvido chega a noticia de que quem não pula e governista, quem é contra a política do PT federal é direita disfarçada, uma kombi passa anunciando a venda de cerveja socialista, a ‘internacional comunista’ ecoa arranhada e em mono, por força de uma caixa de som quebrada.

Sim, o 9º Coneb (Conselho de Entidades de Base) da UNE teve seus momentos ‘Kafka potencializado por LSD’. Mas felizmente não foi apenas um pesadelo.

Antes, um pouco de contexto. Tudo começou para mim e meus colegas de faculdade com uma série de perguntas. O que se faz quando a sua entidade representativa nacional é hegemonizada e contrária a seus posicionamentos políticos? O que se faz quando o senso comum da universidade instala o clima de decepção niilista com os seus representantes mas não contribui para desafiá-lo? E quando esses mesmos donos do poder lhe convocam para um conselho nacional onde se sabe que não haverá chance para a oposição?

Acreditando na importância cabal dessas perguntas e que somente a diretoria do Centro Acadêmico não era suficiente para respondê-las, as questões foram colocadas perante todos os estudantes e a resposta da minha faculdade foi decidida em Assembléia.. Por 19 votos a 4 decidiu-se tomar parte e mandar um delegado à UNE. Determinada nossa participação, restava saber quais idéias seriam defendidas. Para isso montou-se um Grupo de Trabalho aberto para discutir as pautas – que também teve a função de nomear este que escreve como delegado – e partimos para Campinas. E tudo começou bem.

Os debates sobre a reforma universitária e a defesa do passe-livre estudantil foram ricos, pluralistas e surpreendentemente divertidos. A argumentação (tanto a bem articulada, pelo brilhantismo, quanto a escabrosamente estúpida, pelo humor do absurdo), o clima de disputa ideológica e a abertura a quem quisesse falar tornaram os eventos rigorosamente estimulantes. Falou-se muito. Estudantes de toda parte narraram acontecimentos regionais que de outra maneira jamais tomaríamos conhecimento. A reflexão e o questionamento imperaram pela maior parte do tempo.


As teses dos campos políticos foram distribuídas a todos interessados. Pelos gramados do ciclo básico da Unicamp (Universidade de Campinas), grupos de discussão sem ostentar esse título se agrupavam e confabulavam sobre todo tipo de coisa, inclusive contra aquele próprio conselho do qual estavam participando.

Sem contar os momentos de política subjetiva, mas de importância incontestável. O que incluiu ouvir a delegação do Pará batucando até bem depois das 4 da manhã, deixar-se integrar com os estudantes por afinidade de área, campo político ou simplesmente pessoal, e, finalmente, protestar e demonstrar nossa insatisfação quando nos faziam sentir como gado. Pois sentíamos ofendidos quando gritos de guerra foram priorizados em detrimento de falas, teses herméticas sobrepostas a pontos de pauta, ideologia sobre idéias.

E essa revolta foi mister para entender por que o Coneb não foi o que poderia ter sido e porquê a União Nacional dos Estudantes não é o que poderia ser. O Coneb nos fez sentir como bovinos. A UNE trata os estudantes não como seres pensantes, mas como massa de manobra para os interesses do Partido. A escolha feita foi a da massificação sem inclusão, o desprezo pela base, a glorificação da direção.

E eis que se explica o surrealismo da plenária final. O momento mais importante do Conselho, onde as deliberações para UNE são tomadas, foi uma “briga de torcidas cegas”, nas palavra do estudante da UFPR (Universidade Federal do Paraná) que protestava sozinho do lado de fora, nariz vermelho de palhaço e placa clamando aos estudantes para não se submeterem àquela massificação.

Os momentos de votação foram de ratificação do que já havia sido decidido. Pior, por vezes era impossível distinguir se o que se passava era uma votação, pois a voz da mesa estava encoberta por urros e gritos.

Tamanha foi a desorientação que as resoluções do Conselho em si perderam largamente sua importância perante a pergunta que se impôs num cartaz na saída do ginásio da Unicamp: “Até quando o Movimento Estudantil vai ser briga de torcidas organizadas?”
[r]

fotos. vinícius furuie


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pela cultura, em prol do prestes maia

por fábio brandt

Um dia, o jovem Severino, com seus vinte e poucos anos, ficou sozinho em um ponto de ônibus na capital de Pernambuco, Recife. Não sabia para onde ir. Não conseguia saber. Qual direção tomar? As placas não diziam nada. O que significam as palavras? “Cego, burro e tapado”, foi o que pensou. No outro dia, após dormir na rua, conseguiu chegar à casa de seu tio, que era o destino da empreitada. Prometeu a si mesmo que não seria mais “cego, burro e tapado” e foi à banca de jornal para comprar um método de alfabetização.

– Quanto custa?
– Para que você quer? – devolveu o jornaleiro.
– Para não ser mais nem cego, nem burro, nem tapado.
– Então pode levar de graça.

Com o presente debaixo do braço, foi para casa e, com a ajuda do tio, Severino consumiu todo método. Começou a ler. Para treinar a escrita deficiente, natural em todos os que são recém-alfabetizados, o aluno Severino ia copiando tudo o que lia pela frente. “Toda a manhã meu tio nos levava para o serviço na carroceria de seu caminhão. Eu pegava pedaços de papelão e, com um carvão, copiava o que estava escrito nas placas da rua.” Diz ter se aperfeiçoado assim, sozinho.

Algum tempo depois, Severino foi ao casório de uma prima que nem conhecia. “Lá, fui encontrando e me apresentando aos parentes, e anotava o nome de todos. Isso chamou atenção do pessoal. Depois do casamento vieram até mim e falaram que também queriam saber fazer. O conhecimento que era só meu passei pra muita gente só naquela época em que era novo”, conta, hoje, seu Severino.

Seu Severino – que, quando analfabeto, achava “a coisa mais bonita do mundo” poder pegar um lápis e assinar o nome, escrever uma poesia ou uma carta – desenvolveu por suas experiências de vida uma filosofia que coloca a cultura e a disseminação do conhecimento como valores humanos. Agora, com 56 anos de idade, é conhecido pela biblioteca que montou no prédio Prestes Maia, no Centro de São Paulo – onde mora desde 2002.

Catador de materiais recicláveis, Severino conta que não é fácil a vida que leva. “Trabalho com reciclagem porque é o jeito. Pagam três centavos para quilo de jornal. Faço isso porque não consigo outra coisa”. Mas foi assim que, ao longo de alguns anos, mil e tantos livros foram encontrados no lixo de São Paulo e guardados com muito cuidado em sua casa. Isso porque, ele diz, tinha dó de mandar as obras para a reciclagem. “O pessoal arrancava as capas e triturava o miolo. Eu ficava com dó de ver todos aqueles livros sendo destruídos para virar papel novamente.”

Surgiu a idéia da biblioteca e a jornada de seu Severino ficou um pouco mais longa. Além do serviço como catador, ele se dedica a manter os livros. “Sou eu, minha mulher e mais 22 voluntários, sem ganhar dinheiro por isso, é um trabalho público”. A recompensa parece vir na serventia social da iniciativa. Com muito orgulho ele afirma: “É um incentivo aos jovens do Prestes Maia e da região”. A biblioteca também valorizou a área culturalmente. “Vem gente de outros bairros pra fazer trabalho de escola, gente da Luz, do Brás, vem gente da Cásper”, conta o cidadão Severino.

A política de empréstimos é simples e condizente com a idéia de disseminação que tem o autor da iniciativa. Basta deixar nome completo, RG e telefone de contato. “Depois, se quiser devolver outro livro e ficar com o que pegou, pode. Se quiser ficar mais tempo, também”. A biblioteca sempre recebeu os livros de volta. Hoje já são mais de 5 mil volumes à disposição.

O senhor Severino ainda lembra: “É muito fácil seguir por maus caminhos, ir pro boteco. No boteco se aprende coisas muito ruins, se expõe a ser preso, às vezes, nem por ser má pessoa, mas por estar lá. Na biblioteca você não corre esse risco. A cultura é um caminho certo”.

Antes, “a ocupação” era a mais comum referência aos dois prédios da Prestes Maia, 911, onde habitam cerca de 400 famílias sem-teto. Hoje, nota-se uma diferença. Como disse o militante Severino: “virou resistência cultural”. O local agora é ponto de encontro de estudantes, intelectuais e artistas. “Muita gente que não sabia o que era, que nunca tinha ido, hoje tem vontade de conhecer o Prestes Maia”. Eventos como as exibições do cineclube Prestes Maia, os debates, as mostras de arte e muitos outros são prova disso. Recentemente, o Prestes Maia abrigou trabalhos de artistas brasileiros que não puderam ir à Cuba expor na Bienal de Arte, foi um espaço da Bienal de Havana no Brasil. Recebeu Aziz Ab’Saber, Pádua Fernandes, Alfredo Bosi para falar sobre direitos humanos, Constituição, espaço urbano, literatura. Promoveu a troca de idéias e experiências entre um público muito heterogêneo.

O que começou com o carinho de seu Severino pelos livros e a importância que ele dá à cultura culminou no desenvolvimento de uma resistência pacífica fortíssima. Foi a principal contribuição para desfazer a imagem negativa que toda forma de resistência popular recebe no país. “Estudei muito, antes de dar a entrevista pra Folha. É preciso entender a importância de tudo isso para a nossa luta. Eu não tenho muita cultura, mas sei que ela é necessária”, conta Severino. “Teve gente que discordou da idéia da biblioteca. Não entende o trabalho dos artistas no Prestes Maia, não entende os cartazes, não entende a importância disso pra nossa luta. Mas a biblioteca foi importante pra continuarmos no prédio”. [r]


colaborou. tadeu breda


foto. daniela alarcon
retrato de seu severino como "o pensador", de rodin, colado num dos pilares do subsolo do prestes maia, mesmo ambiente em que se encontra a biblioteca da ocupação

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