31.3.06

 

com quantas polícias se faz uma democracia?

entrevista a tadeu breda

A recente absolvição do coronel e deputado estadual Ubiratan Guimarães – único acusado pelas 111 mortes do massacre do Carandiru – e a proximidade do aniversário de 10 anos do massacre de sem-terras em Eldorado dos Carajás pedem uma discussão mais aprofundada sobre o papel e a estrutura dos órgãos repressores do Estado e a tradicional truculência que a polícia reserva a momentos sociais e à população mais pobre do país.


Abaixo estão trechos da entrevista realizada pelo reverso com Carolina de Mattos Ricardo, coordenadora da área de Justiça e Segurança Pública do Instituto Sou da Paz, sediado em São Paulo. Ela fala das conseqüências que a formação de soldados e oficiais traz para a atuação dos policiais nas ruas, do jeitinho brasileiro que contribui para a disseminação da corrupção policial, comenta dados da Ouvidoria sobre violência, sugere propostas e discorre sobre a importância de uma polícia bem preparada para a democracia do país.

Também aponta para o fato de que não basta apenas criticar o mau policial. “Criticar é fundamental e importante, mas também precisamos incentivar as boas práticas, mostrar para os jovens PMs que eles podem ser diferentes daqueles que ainda carregam resquícios da ditadura.”

Dados da Ouvidoria de Polícia do Estado de São Paulo apontam certas tendências: de 1995 a 2005, ocorreram 3.203 casos de homicídio por policiais. Aproximadamente metade das mortes, 1.457 casos, se deram entre 2002 e 2005. Existiu alguma diferença nas políticas de segurança pública dos governos anteriores e atual para se observar essa concentração de assassinatos nos últimos três anos?
Não tenho todas as informações detalhadas em relação às mudanças políticas, mas de fato houve uma ruptura em 2002, com a mudança de secretário. O Saulo (de Castro Abreu Filho, atual secretário de Estado de Segurança Pública) trouxe uma postura mais linha dura inicialmente. De toda forma, acho importante olharmos os dados desagregados. Não tenho de cabeça, mas entre 2002 e 2005 houve uma diminuição entre gradual de ano para ano – dado que também é significativo. O novo secretário entrou com essa postura mais linha dura, mas passou a ser fiscalizado e criticado por isso, e ao longo do processo observou-se uma diminuição na violência policial. A partir de 1995, que são os dados que a gente tem, começa a haver uma fiscalização maior. A Ouvidoria sendo criada, em 1995 uma lei que obrigou a publicação trimestral dos dados sobre criminalidade. O controle sobre a polícia aumentou. Com certeza, existem problemas nos registros, nem tudo que é denunciado é levado em conta. Por isso, os dados são apenas um indicativo, mas revelam pra gente que há muito mais coisa a ser trabalhada e esmiuçada na polícia.

E os dados sobre a forma como as pessoas foram mortas pela polícia: 51 por cento com tiros nas costas e 36 por cento com tiros na cabeça? São cerca de 3,17 tiros por vítima.
Estes, sim, demonstram um problema de violência policial mesmo. Via de regra, se a pessoa toma tiro nas costas, quer dizer que a pessoa está fugindo, ou seja, não está oferecendo a reação que justifica a legítima ação do policial de dar o tiro. O mesmo com tiros na cabeça.

Quais as principais razões da violência policial?
É difícil saber ao certo, mas o que acontece é que a polícia que temos atualmente é uma instituição fundada e conformada no período militar. Ela é uma herança da ditadura. É uma polícia que foi formatada para proteger o Estado contra os “transgressores da ordem”. Na época havia mesmo um clima de combater os guerrilheiros o tempo todo, então a polícia era mais violenta mesmo – e tinha que ser, dentro do motivo pelo qual ela foi criada. Isso se arrasta até hoje. Outra questão: ela tem uma formação militar, uma formação para a guerra, para combater, e não para lidar com cidadãos. Ela tem todo esse resquício. Durante a abertura democrática, a polícia foi uma das instituições que foi menos permeada pelas discussões e pelo diálogo com a sociedade civil. Então ela é, mais que outras, muito corporativa e muito fechada. Dessa forma, é mais difícil exercer algum tipo de controle sobre as arbitrariedades praticadas.

O que você acha que teria de mudar na postura dessa polícia para que ela passe a ser menos violenta e mais respeitadora dos direitos do cidadão?
Não existe uma receita. Quando falamos de polícia, não é só polícia militar, é a civil também. Daí é um problema, porque elas são duas, dividas, cada uma com uma atribuição, mas complementares. A civil investiga, a militar é mais ostensiva. Uma precisa da outra, mas elas não dialogam. Primeiro temos de olhar para isso. A polícia precisa se unificar ou, pelo menos, integrar ações. Depois, a polícia precisa ser entendida, estudada, para que se comece a identificar quais são seus principais problemas. A questão da hierarquia, da disciplina, da formação é um problema, porque muitas vezes o policial militar é formado com muita violência também, e reproduz isso na rua.

Inclusive eu tenho outro dado da Ouvidoria: cerca de 80 por cento dos PMs envolvidos em crimes contra civis são absolvidos, enquanto 90 por cento dos que cometeram crimes de quartel (indisciplina, insubordinação, etc) pegam punições.
A formação militar tem essa característica rígida até hoje. Lá dentro funciona muito, os indivíduos ficam na linha. Então, como a polícia é muito capilar, você tem uma dificuldade de fazer esse controle. O cara que está lá na ponta, no comando, pode ter tido uma formação primorosa – e a formação da PM melhorou muito nos último anos –, mas você não tem garantias de que o cara que está na outra ponta vai praticar o que ele aprendeu. Por outro lado, os órgãos de fiscalização da polícia, principalmente a Corregedoria, são formados por policiais militares. Ainda há um corporativismo forte e um abrandamento, sem muitas punições para crimes contra civis. Essa última gestão (do secretário Saulo) tem muitos prós e muitos contras. Um dos prós é que, de fato, ela tem punido e afastado muitos policiais. A linha dura é ruim por um lado, mas tem uma outra característica: eles punem os policiais, afastam, para dar exemplo mesmo. Porque se eles bancam fazer uma ação mais dura na rua, têm de bancar uma ação mais dura na corporação também.

Você acha que o desvio de conduta e a corrupção se originam no quartel?
Eles têm esse tipo de tratamento no quartel, sofrem punições e ficam bastante disciplinados. E talvez extravasem isso na rua. Mas também há o detalhe da cultura do que é público no Brasil, e aí não diz respeito somente aos policiais. Há muita tolerância, existe uma admissão da história do “jeitinho”. O policial pára a as pessoas na estrada e pede suborno. E muita gente aceita “molhar a mão do guarda”. A corrupção – e não a violência – tem um fundo nessa característica estrutural. O público nunca foi público no país, sempre foi favor, troca. A corrupção entra um pouco aí, claro, aliada ao poder que o policial tem sendo o braço armado do Estado. É uma mistura da aceitação com a coação.

Por que você acha que os movimentos sociais ainda são bastante criminalizados no país e seus militantes, tratados como se fossem criminosos?
É o fator da formação militar, para o combate. Eles não têm uma formação em que se aborda o entendimento do que são os movimentos sociais hoje em dia, do que eles significam, que na verdade eles são um braço da democracia e não um risco ao Estado. A formação deles não abarca isso. Nesse sentido eles vêm também da ditadura, da forma de se lidar lá atrás. Existe isso, ainda que eu ache que está havendo muita fiscalização por parte da sociedade. Daí fica um pouco mais difícil para os policiais agir com violência. O que acontece também é que a polícia é o limite. Em caso de desapropriação, por exemplo, de movimento sem-teto em São Paulo. Você tem toda uma medida anterior, de mandados judiciais, etc. E a PM é o limite. Sendo assim, a chance de ela agir com violência é muito maior. Se não há uma formação propícia e um questionamento político da sociedade, ela vai ser truculenta.

Qual a importância que você vê numa polícia bem preparada para a consolidação da democracia no país?
Eu acho que a polícia é fundamental. Eu adoraria poder viver num país em que não precisasse existir um braço repressivo e de controle do Estado. Mas não tem como, não hoje em dia, do jeito que as coisas estão. E a polícia acaba sendo, em muitos casos, o único braço do Estado em muitos lugares complicados, de periferia, em que outros órgãos não chegam. A polícia ganhou uma importância, tem sido a referência do Estado. Não devia. Os outros serviços todos deviam atuar para que não precisássemos da polícia. Mas como ela acaba sendo esse braço avançado do Estado, ela tem de servir os cidadãos.
No Brasil a gente tem muito problema de violência e criminalidade. Ainda que acreditemos que prevenção seja a melhor saída – ou seja, trabalhar as causas estruturais da violência – existe muita coisa montada que, se você não agir com energia para resolver, nunca vai mudar. E a polícia é quem precisa fazer isso. Por isso, ela tem de ser mais inteligente – quer dizer, trabalhar muito mais com base em planejamento e dados – do que reativa. Porque quando ela é reativa ela vai para tudo quanto é lado, acaba agindo com violência. Se ela planeja, ela entende o problema, faz uma ação organizada, consegue ser mais eficiente e violar menos direitos. A polícia precisa entender que ela está aí para estar nas ruas, e não para combater o tempo todo. [r]

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