25.4.06

 

a febem, o pátio, a secretaria... e a justiça?

por renato brandão

Eram 10 horas da manhã no Pátio do Colégio (centro de São Paulo). Véspera do feriado de Tiradentes e o sítio histórico da capital paulista recebia, como de costume, alunos do Ensino Fundamental e Médio. As crianças faziam bagunça e barulho, mas quando os monitores falavam de Anchieta ou dos povos indígenas, a maioria delas prestava atenção. Outras se distraíam com o movimento de veículos e pessoas, com os velhos prédios ou com o ‘impostômetro’, instalado na sede da ACSP (Associação Comercial de São Paulo), na Rua Boa Vista, que indicava até aquele momento por volta de 234 bilhões de reais em impostos pagos em 2006 à União. Sem dúvida, uma quantia significativa...

Enquanto isso, na mesma praça, algumas dezenas de pessoas ajudavam a amontoar dúzias de bonecos de papelão em frente à Secretaria de Justiça do Estado de São Paulo. Outras portavam cartazes com dizeres contra violência do Estado contra menores da Febem (Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor). Todas estas pessoas, reunidas a outras centenas, aguardavam o início de um ato público pelo fim da tortura e da violência na instituição que completa 30 anos no dia 26 de abril. Entre a Secretaria e os manifestantes, uma fita de isolamento amarela e preta. E meia dúzia de policiais militares de prontidão.

O protesto, iniciado por volta das 11 horas da última quinta-feira, foi organizado por entidades de direitos civis como a Amar (Associação de Mães e Amigos de Crianças e Adolescentes em Risco), a Conectas Direitos Humanos e o MNDH (Movimento Nacional de Direitos Humanos). Além de ativistas de direitos humanos e parlamentares, o ato contou com a presença ex-internos e parentes de internos (presos ou mortos), a grande maioria dos presentes.


O ato teve início com um discurso do coordenador estadual do MNDH, o advogado Ariel de Castro Alves. “Estes bonecos de papelão simbolizam os jovens mortos e torturados”, disse. Em seu discurso, Ariel criticou a administração de Berenice Gianella, presidente da Febem, e pediu seu afastamento. “É a gestão mais autoritária que enfrentamos. Ela não quer nenhum diálogo com as entidades de direitos civis, e o pior é que a cada rebelião ela coloca a culpa nos movimentos de direitos humanos”. Ele acusou Berenice de querer implementar “o sistema penal juvenil” nas unidades da Febem. “As estruturas atuais são mini-presídios, réplicas de Centros de Detenções do Estado”, reclamou Ariel, que afirmou que não é permitida a inspeção das unidades pelas entidades de DH, exceção a do Tatuapé, graças a uma determinação da Corte Interamericana Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos).

Outra que discursou indignada foi a presidente da Amar, Conceição Paganele. “Queremos o cumprimento do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) e o fim da violência contra os menores, representados pelos bonecos”. Ela também condenou a impunidade reinante para os violadores de DH e foi mais incisiva com a gestão de Berenice Gianella.

Parentes de vítimas desta violência também fizeram discursos no início da tarde.

Manifestante pela primeira vez

Empunhando cartazes, muitos parentes compareceram ao ato público contra a violência na Febem. Muitos participavam de uma manifestação pela primeira vez. Não escolheram, esperavam e queriam que essa “primeira vez” fosse por esta razão.


Uma destas ‘estreantes’ é Raimunda Maria da Silva, 69 anos, moradora de Itaquera (Zona Leste paulistana). “É a primeira vez que venho”, contou ela, que veio protestar pelo neto de 18 anos, preso na Unidade do Tatuapé. “Estou aqui para dar um grito de alerta. Este rapaz [o neto] não aprende nada por lá. O que vai ser dele?”, lamentava, afirmando que seu neto, ao invés de “estudos”, é maltratado por funcionários da entidade. “Os internos não recebem cursos, recreação e atenção. São mantidos presos como bichos”, declarou dona Raimunda, que visita o neto a cada 15 dias.

Busca solitária por Justiça

A maioria dos parentes de ex-internos presentes no ato público em frente à Secretaria de Justiça era composta por mães. Nos rostos dos familiares, olhos marejados e silêncio doloroso. Poucas conseguiam falar sobre seus filhos mortos.


“Só Deus me dá forças”, consolava-se Solange de Moura Queiroz, 39, mãe de Sidney, 18, encontrado com queimaduras na Unidade Tatuapé e dado como morto após duas semanas na UTI. Segundo a versão da Febem, Sidney ateou fogo ao próprio corpo. Mas Solange duvida desta versão. “Meu filho morreu por uma discussão com os funcionários. Ele estava nervoso. Uma enfermeira deu sedativo e ele foi para a sala descansar”, explicou. Depois de alguns minutos, Sidney foi encontrado em chamas por dois outros adolescentes, que pediram socorro. Mas Solange disse que não houve ajuda, já que os funcionários “ficaram rindo” da cena. As desconfianças da mãe de Sidney são maiores porque o rapaz teve queimaduras “do tronco até a linha da cintura”, mas não na “parte de baixo nem nas costas”.

O caso foi arquivado, mas Solange busca justiça, mesmo que lute sozinha. Neste ano, ela começou a estudar em um cursinho pré-vestibular, para conseguir uma vaga em Direito. Sidney chegou a dar depoimentos na Justiça denunciando maus tratos na Febem. “Tem até uma carta dele na Justiça relatando tudo”, disse.

O jovem ficou pouco mais de ano internado. A primeira passagem foi por envolvimento com narcóticos. Foi a própria Solange quem o enviou para a Febem, acreditando que o filho pudesse ser reeducado “Não sabia como era. Eles não educam ninguém. Estão transformando os meninos em bandidos, assassinos”. Após quatro meses, Sidney saiu. Mas 21 dias depois, ele cometeu outro delito, desta vez assalto à mão armada. Foi sua sentença de morte.

Solange criticou o sistema ao qual os jovens são submetidos. “Eles ficam meses sem fazer nada ou trancados”. Para ela, a solução seria a criação de unidades menores, para um número menor de internos. “É mais fácil reeducar dezenas do que centenas de meninos”. A atual presidente da Febem também é criticada. “Ela está no lugar errado, Ela deveria continuar no sistema penitenciário”.

A dor de Solange é maior porque Sidney sairia em breve da Febem. “Ele estava feliz e com planos. A psicóloga tinha avisado que ele estava saindo”, lembrava a mãe. “A primeira coisa que ele queria após sair de lá era um mousse de maracujá e uma carne. O que eu não esperava era morte dele”.

Além desta mágoa, Solange ainda convive com o poderoso preconceito social contra os menores da Febem. “Tem gente que passa por mim e diz: ‘Tem que morrer todos!’. Sinto pena, porque quem diz isso não imagina que seu filho poderia estar lá na Febem”. Para ela, a sociedade “precisa pensar que, se os menores forem tratados como animais, eles ficarão ainda mais revoltados”.

Mesmo com os olhos um pouco cansados, ela passou o tempo discursando para os presentes e concedendo entrevistas a jornalistas. Fiquei até constrangido por tantas perguntas, mas Dona Solange foi gentil e respondeu a todas pacientemente. Agradeci. Ela retribuiu com um sorriso e seguiu, em direção a caixa de som, com a luta por justiça na Febem e para o filho.


Recomeço com flores e preconceito

Os discursos continuavam. Solange e Edi, outra mãe cujo filho foi morto dentro da Febem (ver entrevista abaixo), já tinham expressado sua indignação. Ariel e Conceição falaram mais uma vez. Acontecia uma apresentação de caratê, dos meninos atendidos por um projeto da Amar na Cidade Tiradentes, bairro carente da capital. Uma roda se formou em torno deles, mas algumas pessoas estavam um pouco dispersas. Enquanto isso, dois jovens distribuíam flores de papel para os manifestantes no evento no Pátio do Colégio ou transeuntes que apertavam os passos. Um deles me oferece uma. “Já tenho, obrigado”, disse a ele. “Pode levar duas, não tem problema. Toma”, sorriu o jovem. Antes que fossem embora, os interrompi para ter minha última conversa no lugar.


Um pouco acanhados, aceitaram a pequena entrevista. “Estamos aqui para lutar por aqueles que não podem estar aqui", disse João (na verdade, D., 16), em referência aos milhares de menores mantidos presos na Febem, pela qual teve uma passagem de cerca de um ano. A garota que distribuía floras com ele era Daniela, (M., 16), também ex-interna da Febem.

Neste período detido, João relata ter aprendido muitas coisas. Como o quê? “Que a violência não educa, só gera mais violência”, disparou. E por aí, teceu mais críticas generalizadas ao tratamento dado por funcionários aos internos.Para João, muitos jovens acabam na Febem por falta de oportunidades na vida. “Daí, você vê um tênis em uma loja, mas não pode comprar. Isso leva muitos ao desespero, para o ‘caminho errado’”, disse o rapaz, morador de Parelheiros (Zona Sul paulistana).

A experiência na Febem mudou João. Após sair do “inferno”, ele começa a tocar sua vida para frente e cultiva seus sonhos, direitos elementares, expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. “Quero voltar aos estudos [artigo 26] e arrumar um trabalho [artigo 23]”. Por enquanto, ele não obteve sucesso. “Está difícil, mas eu não quero voltar para aquele mundo de jeito nenhum.” Falou, ainda esperançoso, que conta com o apoio da mãe, que tem mais nove filhos.

Além das dificuldades comuns aos jovens da periferia enfrentadas por João, ele ainda sofre preconceito pela sua passagem pela Febem. Isso o revolta bastante. “Queria ver uma pessoa defender [tortura ou morte para os internos] se um filho dela estivesse lá”. É nesta sociedade que ele recomeça sua vida. Ele convive diariamente com as diferenças de oportunidades entre os seus indivíduos. Ele resiste calado, por enquanto. Até quando?

Bexigas pretas

O encerramento do ato aconteceu com a leitura de nomes dos 27 adolescentes mortos na Febem, desde março de 2003, segundo levantamento da Amar. Os manifestantes fizeram um minuto de silêncio ao meio-dia, quando a igreja do Pátio bateu seus sinos. Depois, os organizadores distribuíram cercas de 300 balões brancos e 27 pretos – estes, simbolizando os internos mortos – para o público. Aquele que recebi, constava uma tira de papel com os dizeres: C.L.S 22/01/2004.


Ao som de batucadas e “pedidos a Cristo” para que a ‘justiça divina’ inspire a ‘dos homens’, as bexigas foram soltas, aos poucos, subiam em direção ao céu. A pedido dos policiais militares presentes, o barulho dos tambores foi cessado, já que o padre havia alegado que o som alto atrapalhava a cerimônia em homenagem ao jurista Miguel Reale, morto na semana anterior. De fato, o sacerdote da Igreja do Pátio do Colégio já tivera uma furiosa discussão com manifestantes, uma hora antes, reclamando do ato. [r]

fotos. tadeu breda

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