11.4.06

 

'a igreja deve tomar posições'

entrevista a fábio brandt

Padre Júlio Lancelloti é bacharel em educação e em teologia, foi professor universitário e há vinte e um anos é sacerdote católico. Sua trajetória é marcada por influências da teologia da libertação e por importante participação em movimentos sociais. Atualmente, Padre Júlio trabalha com a Pastoral do Povo de Rua e do Menor, da Arquidiocese de São Paulo, e coordena a Casa-Vida, entidade que atende crianças órfãs portadoras do HIV, além diversos outros projetos dos quais participa.

Na sua concepção, como a revitalização do Centro da cidade de São Paulo tem sido conduzida?
Concordo que a memória histórica da cidade deva ser preservada, que o Centro deva ser restaurado. Mas isso não pode ser à custa da criminalização e da expulsão da população pobre que vive na região. O Centro não pode ser só um lugar das elites e objeto do turismo. Não posso concordar com a política que vem sendo aplicada à região, é uma política de segregação, de apartheid.

Como seria um Centro mais democrático?
Deve-se levar em conta todas as pessoas que estão ali, pensando a cidade em seu todo. A cidade deve ser rearranjada, mas com tudo que tem, não só com o que se deseja. Os moradores de rua também estão presentes e devem ser respeitados e incluídos. Uma rede de serviços diversificada é necessária para atender a uma população tão heterogênea.

O que pode ser feito para que revitalização e inclusão sejam possíveis ao mesmo tempo?
Garantir moradias provisórias, serviços de acolhimento, albergues, realizar coleta seletiva com a participação dos catadores, usar os prédios vazios para moradia. São muitas medidas que podem agir neste sentido. Claro que elas devem ser pensadas com critério, como prevê a legislação. Mas não é o que acontece. Um exemplo são os albergues, eles devem ser pequenos, deveriam ser vários atendendo 100 pessoas cada um e não poucos atendendo setecentas, mil pessoas cada. Além disso, o albergue sozinho não é a solução. Ele pressupõe que haja moradias provisórias e programas de moradia permanente.
Também é necessário entender que a política caminha bem se ela vai humanizando as relações existentes na cidade. Não basta tornar a região bonita e limpa. Tem que torná-la bonita, limpa, humana e acolhedora. As políticas também devem ser integradas, talvez fosse necessário repensar a forma de administração da cidade. A administração por secretarias é muito complicada, não há integração entre as diversas políticas, como se o problema de um não fosse também do outro. Isso é evidente nesta questão de moradia: a limpeza pública quer varrer a população de rua da cidade, a secretaria de habitação não tem nenhum programa em andamento. É um descompasso muito ruim para a população.

Como o senhor avalia a relação entre ongs e movimentos sociais?
Os movimentos são uma resposta histórica ao processo de transformação do Estado em Estado-mínimo. Um estado marcado pela sua própria ausência, situação que gera um vazio responsável pela violência, pela exclusão, pela marginalização. Os movimentos passam por transformações e hoje percebemos a necessidade do surgimento de várias entidades e ongs. Algumas delas são como um amortecedor para a transformação social, mas as que realizam um trabalho sério não fazem uma ação paralela, fazem parte da construção de Políticas Públicas, em diversos campos, como a garantia de direitos.

Muitas críticas dirigidas ao senhor baseiam-se na idéia de que a Igreja não deve interferir nas Políticas Públicas. Qual a sua reação?
Essa é uma visão extremamente funcionalista da sociedade. Neste caso, acaba por ser também uma visão tirânica, não-pluralista e pouco democrática. É função da Igreja a evangelização e a explicitação do anúncio evangélico, mas trabalhamos com pessoas concretas. O anúncio evangélico para a população de rua é o direito de morar, de trabalhar, de vestir, de ter acesso à saúde. A Igreja tem sim uma função política e social, que não é sua função primeira, mas também é sua função. O religioso tem um compromisso com a vida, com a dignidade humana. A Igreja não pode ficar calada diante da tortura, da violência, da exploração.
Então, estava tudo bem enquanto a Igreja estava casada com o Estado. Enquanto havia a cristandade, estava tudo bem. Hoje, critica-se uma Igreja inquisitorial, uma Igreja que dizia aos escravos “não faz mal vocês serem escravos aqui, porque no céu vocês serão livres”. Hoje se cobra, historicamente, que a Igreja deve tomar posições. Cobramos muito da Igreja por ter sido durante muito tempo alinhada com o Estado.
Qual foi o papel da Igreja durante a ditadura? D. Paulo Evaristo Arns acaba de receber a maior comenda do governo argentino porque ele foi o cardeal que mais interferiu, ajudou e defendeu o povo argentino durante o regime ditatorial no país. A Igreja na Argentina não fazia nada, quem tentou foi morto. D. Paulo levou pra fora da América Latina as denúncias dos desaparecimentos, se manifestou contra a ditadura. Quantas pessoas a mais não teriam morrido se a Igreja não interferisse durante as ditaduras, não abrigasse refugiados?

Mas dentro da Igreja também há discordâncias com relação a posicionamentos. A Opus Dei é muito diferente das pastorais, por exemplo.
A Igreja é pluralista, o que se reflete nas divergências de pensamento. O cristianismo se manifesta de várias maneiras, como a Opus Dei, as Igrejas Pentecostais, as Evangélicas, e tantas outras. O que cada grupo vai procurando é a maneira de ser mais fiel àquilo que o evangelho propõe. São posturas e ações diferentes diante dos contextos. É fato que, dificilmente, a Opus Dei e outros setores farão defesa dos Direitos Humanos. Durante a ditadura não foram deles que partiram manifestações contra o regime. Se há um massacre de presidiários ou de moradores de rua, eles não se manifestam por punições. Não que eles concordem e aceitem, mas não se manifestam contra. Não sou juiz deles, não posso condenar. Mas, tenho a impressão de que esses setores não devem apoiar o trabalho que faço.

Como o senhor analisa a presença de outras religiões nos trabalhos sociais?
Eu vejo que as entidades das igrejas são hoje as que fazem os maiores trabalhos sociais. Não é só a Igreja Católica. Posso citar o notável o trabalho da Federação Espírita, da Igreja Metodista, da Associação Evangélica Beneficente. O que reforça o papel social da religião. Recentemente, o papa Bento 16 lançou a encíclica “Deus é amor”, na qual deixa explícito que é função da igreja a função do amor, como amor social e político, no sentido de transformação.

O que o senhor procura para se informar?
Tento ler dois, três jornais ao longo do dia. Tento saber diferentes versões dos fatos. Procuro conhecer o que se publica em mídias independentes, como a Adital, a Caros Amigos. Não adianta só buscar informações na Globo, no Estado e na Folha. É necessário ter outras fontes de informação.

Recentemente o senhor deu uma entrevista para a revista Veja, mas a matéria publicada só continha ataques ao seu modo de pensar e agir. O que o senhor retirou deste incidente?
Aquilo era uma encomenda, a Veja é um braço do PSDB defendendo o Serra. A repórter me entrevistou por telefone, foi uma conversa de muitos minutos. Em um momento disse a ela que a entrevista não estava adiantando de nada, pois percebi que ela só queria achar alguma frase para encaixar na matéria e ser usada para o propósito da revista e dela. Após a publicação do texto enviei uma carta à revista, mas ela não foi publicada na íntegra e nem mesmo foi publicado seu conteúdo essencial. Cortaram a parte em que denunciei que o texto não era fiel à conversa que tive com a repórter. Lamentei a ação da revista, já fui capa da Veja São Paulo em reconhecimento ao meu trabalho com o povo de rua. Escrevi isso na carta, mas também foi cortado.

O senhor acompanhou a cobertura feita sobre a crise da PUC, as críticas à interferência da Igreja?
A PUC não podia continuar vivendo com um déficit de 4 milhões por mês. Não dá para gerir nada nessa situação. Quem ia conseguir o dinheiro para cobrir o déficit? Deve-se saber se a PUC é pública ou privada. Se ela é comunitária, quem vai financiar isso? A Igreja, através da Fundação São Paulo, tinha que tomar uma decisão sobre isso.

Houve críticas que consideraram anti-democráticas a decisão de D. Cláudio e a interferência.
A democracia não pode ser feita à custa dos outros. Eu vou ser democrático pondo meu salário lá no alto, com um monte de gente trabalhando comigo e o outro pagando por tudo isso? Por que essas pessoas que queriam manter essa tradição democrática não arrumaram o dinheiro para pagar a dívida? Nos gabinetes dos reitores da PUC tinha mais funcionários que no gabinete do presidente, todos com altos salários. Quem paga isso? Sem mencionar as bolsas de estudos e uma série de outros gastos.

O que são, hoje, as Universidades no país?
Virou um grande mercado. Por um lado as Universidades públicas não dão nenhum retorno para a sociedade, por outro lado, a maior parte das privadas são de baixíssimo nível. Qual é o retorno que a USP dá pra sociedade que a paga? Eu não vejo retorno. O ensino está degradado. Precisa-se melhorar muito o ensino fundamental, garantir um bom ensino médio e um acesso mais democrático às Universidades.

A democracia no Brasil está funcionando?
A democracia indireta não está trazendo a resposta que se esperava. Há pessoas, como o professor Fábio Konder Comparato, que discutem democracia direta. É necessária a reforma política, há partidos políticos demais, as formas de representação já não são efetivas.

Qual o papel dos Conselhos de participação popular nisso? São possíveis para as classes populares vitórias que transformem as estruturas sociais utilizando-se dos instrumentos disponibilizados pelo próprio sistema?
Não. Hoje vivemos uma democracia formal e uma ditadura política e econômica. Chegamos a esse estágio por um processo histórico e ele só será revertido por um processo histórico também. Eu não verei o mundo transformado, provavelmente você também não. Isso será daqui uns 500 anos talvez...

Em quem o senhor vai votar?
Lula.

O que podemos apreender da crise do PT?
Se não fosse o PT no poder, a crise não teria sido tão explícita. A crise faz parte, devemos saber conviver com ela. A crise é boa, purifica, é um momento de crescimento. A Marilena Chauí ressalta o quanto essa crise foi construída.

Qual sua expectativa com as dissidências do PT?
O PSOL é a principal e está sem base, ele não vai viver só da Heloísa Helena. O próprio Plínio de Arruda faz essa crítica ao partido. Inclusive, um dos fatores para a crise no PT foi o afastamento da base. [r]

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comentários:
Sensacional sua entrevista Fábio.
Muito boa as perguntas, melhor ainda as respostas do Padre Júlio.
 
Grande entrevista Dr. Só faltaram as fotos. Vc até que tem futuro.
 
Muito bem fábio, até que as perguntas não foram ruins. Hoje vi uma reportagem com o padre Julio, embaixo do viaduto Guadalajara, no Belém, por onde eu passo todos os dias (por cima), onde ontem a noite dois motoqueiros passaram metendo bala em alguns moradores de rua. um deles morreu. A polícia, pra variar, nao tem suspeitos.
 
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