23.4.06

 

pela cultura, em prol do prestes maia

por fábio brandt

Um dia, o jovem Severino, com seus vinte e poucos anos, ficou sozinho em um ponto de ônibus na capital de Pernambuco, Recife. Não sabia para onde ir. Não conseguia saber. Qual direção tomar? As placas não diziam nada. O que significam as palavras? “Cego, burro e tapado”, foi o que pensou. No outro dia, após dormir na rua, conseguiu chegar à casa de seu tio, que era o destino da empreitada. Prometeu a si mesmo que não seria mais “cego, burro e tapado” e foi à banca de jornal para comprar um método de alfabetização.

– Quanto custa?
– Para que você quer? – devolveu o jornaleiro.
– Para não ser mais nem cego, nem burro, nem tapado.
– Então pode levar de graça.

Com o presente debaixo do braço, foi para casa e, com a ajuda do tio, Severino consumiu todo método. Começou a ler. Para treinar a escrita deficiente, natural em todos os que são recém-alfabetizados, o aluno Severino ia copiando tudo o que lia pela frente. “Toda a manhã meu tio nos levava para o serviço na carroceria de seu caminhão. Eu pegava pedaços de papelão e, com um carvão, copiava o que estava escrito nas placas da rua.” Diz ter se aperfeiçoado assim, sozinho.

Algum tempo depois, Severino foi ao casório de uma prima que nem conhecia. “Lá, fui encontrando e me apresentando aos parentes, e anotava o nome de todos. Isso chamou atenção do pessoal. Depois do casamento vieram até mim e falaram que também queriam saber fazer. O conhecimento que era só meu passei pra muita gente só naquela época em que era novo”, conta, hoje, seu Severino.

Seu Severino – que, quando analfabeto, achava “a coisa mais bonita do mundo” poder pegar um lápis e assinar o nome, escrever uma poesia ou uma carta – desenvolveu por suas experiências de vida uma filosofia que coloca a cultura e a disseminação do conhecimento como valores humanos. Agora, com 56 anos de idade, é conhecido pela biblioteca que montou no prédio Prestes Maia, no Centro de São Paulo – onde mora desde 2002.

Catador de materiais recicláveis, Severino conta que não é fácil a vida que leva. “Trabalho com reciclagem porque é o jeito. Pagam três centavos para quilo de jornal. Faço isso porque não consigo outra coisa”. Mas foi assim que, ao longo de alguns anos, mil e tantos livros foram encontrados no lixo de São Paulo e guardados com muito cuidado em sua casa. Isso porque, ele diz, tinha dó de mandar as obras para a reciclagem. “O pessoal arrancava as capas e triturava o miolo. Eu ficava com dó de ver todos aqueles livros sendo destruídos para virar papel novamente.”

Surgiu a idéia da biblioteca e a jornada de seu Severino ficou um pouco mais longa. Além do serviço como catador, ele se dedica a manter os livros. “Sou eu, minha mulher e mais 22 voluntários, sem ganhar dinheiro por isso, é um trabalho público”. A recompensa parece vir na serventia social da iniciativa. Com muito orgulho ele afirma: “É um incentivo aos jovens do Prestes Maia e da região”. A biblioteca também valorizou a área culturalmente. “Vem gente de outros bairros pra fazer trabalho de escola, gente da Luz, do Brás, vem gente da Cásper”, conta o cidadão Severino.

A política de empréstimos é simples e condizente com a idéia de disseminação que tem o autor da iniciativa. Basta deixar nome completo, RG e telefone de contato. “Depois, se quiser devolver outro livro e ficar com o que pegou, pode. Se quiser ficar mais tempo, também”. A biblioteca sempre recebeu os livros de volta. Hoje já são mais de 5 mil volumes à disposição.

O senhor Severino ainda lembra: “É muito fácil seguir por maus caminhos, ir pro boteco. No boteco se aprende coisas muito ruins, se expõe a ser preso, às vezes, nem por ser má pessoa, mas por estar lá. Na biblioteca você não corre esse risco. A cultura é um caminho certo”.

Antes, “a ocupação” era a mais comum referência aos dois prédios da Prestes Maia, 911, onde habitam cerca de 400 famílias sem-teto. Hoje, nota-se uma diferença. Como disse o militante Severino: “virou resistência cultural”. O local agora é ponto de encontro de estudantes, intelectuais e artistas. “Muita gente que não sabia o que era, que nunca tinha ido, hoje tem vontade de conhecer o Prestes Maia”. Eventos como as exibições do cineclube Prestes Maia, os debates, as mostras de arte e muitos outros são prova disso. Recentemente, o Prestes Maia abrigou trabalhos de artistas brasileiros que não puderam ir à Cuba expor na Bienal de Arte, foi um espaço da Bienal de Havana no Brasil. Recebeu Aziz Ab’Saber, Pádua Fernandes, Alfredo Bosi para falar sobre direitos humanos, Constituição, espaço urbano, literatura. Promoveu a troca de idéias e experiências entre um público muito heterogêneo.

O que começou com o carinho de seu Severino pelos livros e a importância que ele dá à cultura culminou no desenvolvimento de uma resistência pacífica fortíssima. Foi a principal contribuição para desfazer a imagem negativa que toda forma de resistência popular recebe no país. “Estudei muito, antes de dar a entrevista pra Folha. É preciso entender a importância de tudo isso para a nossa luta. Eu não tenho muita cultura, mas sei que ela é necessária”, conta Severino. “Teve gente que discordou da idéia da biblioteca. Não entende o trabalho dos artistas no Prestes Maia, não entende os cartazes, não entende a importância disso pra nossa luta. Mas a biblioteca foi importante pra continuarmos no prédio”. [r]


colaborou. tadeu breda


foto. daniela alarcon
retrato de seu severino como "o pensador", de rodin, colado num dos pilares do subsolo do prestes maia, mesmo ambiente em que se encontra a biblioteca da ocupação

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comentários:
qualquer resistencia cultural eh valida pois o tempo que alguem passa lendo um livro nao eh tempo perdido eh tempo ganho.

bela materia fabio.
 
Adorei a matéria, Fábio.

Já li algumas sobre o seu Severino antes, mas essa dá uma idéia, sem dúvida, da grande história de vida deste cidadão - que não é diferente da de milhões de brasileiros!

A educação é revolucionária, e é com ela que a sociedade pode mudar.
 
Depois da ótima entrevista com o Padre Júlio Lancelloti, o repórter Fábio volta com esse texto maravilhoso. Parabéns!
 
Como é gostoso ler uma matéria assim. Que além de ser bem escrita dá uma força na nossa confiança... na cultura, nesse bem que é a maior força contra as mazelas que nos acometem, e no ser humano, que é assim, esplêndido, ao conseguir vencer sem que nada lhe fosse oferecido. Parabéns ao seu Severino, um vencedor.
 
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