15.5.06

 

assim caminhará a sociedade?

por renato brandão

São Paulo foi o palco de mais uma série de ações ousadas do Primeiro Comando da Capital (PCC).
Centenas de ataques foram realizados da última sexta-feira até a noite de domingo, em diversas cidades do Estado, mas concentrados principalmente na capital. Guardadas as proporções, não é um exagero afimar que a metrópole paulista teve um final de semana de "Baghdad" - cidade iraquiana que convive diariamente com a violência pós-queda de Saddam Hussein. O saldo da violência traz dezenas de mortos, entre forças de segurança, civis e suspeitos dos atos, delegacias, postos policiais e edifícios públicos atacados, ônibus e bancos incendiados e numerosas rebeliões, com cerca de uma centena de reféns. As altas autoridades do governo e da Secretaria da Segurança Pública (SSP-SP) consideraram que a série de ataques veio em resposta à decisão do governo estadual de transferir lideranças das facções criminosas para a penitenciária de Presidente Venceslau (Oeste do Estado).

Em meio a poucas atitudes concretas do Estado, a idéia de desarticular as principais lideranças das quadrilhas de criminosos é positiva. Beira o absurdo que, mesmo presos, os chefes das organizações criminosas consigam articular rebeliões, ações coordenadas e surpreendentes como a dos últimos dias e, principalmente, comandar seus negócios ilegais, como o narcotráfico.

Quem mora na cidade, obviamente, acompanha atentamente as últimas notícias com um certo grau de apreensão e indignação contra os ataques do PCC às forças de segurança pública, que "tem papel fundamental no Estado Democrático de Direito", segundo nota oficial do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo (OAB-SP), Luiz Flávio Borges D'Urso. Recusando
auxílio do governo federal (o que caracteriza a politização eleitoral de um caso acima de partidarismos), a SSP-SP e o governo estadual esforçam-se em afirmar que a situação está sob controle, em meio a um estado de pânico da população. O sentimento geral é de comoção com a onda de violência generalizada e as mortes de policiais, que, idealisticamente, devem zelar pela "defesa" da população, embora saibamos que a função primordial da polícia é a manutenção de uma ordem, seja ela qual for (no nosso caso democrática, mas repleta de injustiças). Ainda que a polícia seja "o que a sociedade quer que ela seja", nas palavras do ex-delegado carioca Hélio Luz, não se justifica matar policiais.

Mas a questão fundamental nesta história é pouco considerada. Todas aquelas ações do PCC estão relacionadas à problemática geral da segurança e a violência social, portanto não são mais que reflexos da realidade injusta deste país. O PCC é um resíduo de nossa realidade social excludente, e este é o verdadeiro cerne da questão. Vítima dos crimes, a sociedade civil tem sua parcela de responsabilidade geral, considerando-se que somos parte da mesma sociedade desigual. Atribui-se todo o peso das decisões ao poder público, como se nossa única obrigação cívica fosse escolher "representantes" a cada dois anos.

Parte da culpa recai sobre a sociedade civil pelo simples fato de que não é somente o Estado que deve estar a frente dos processos decisórios. Sim, ele é o protagonista, mas temos também nossa parcela de responsabilidade, desde o voto até o descaso com nossas mazelas sociais. Não é culpa apenas de governos "x" e "y" a existência de tantos problemas, mas de todo o tecido social, nos quais convivem ricos, médios e pobres, brancos, mestiços e negros, religiosos e não-religiosos, incluídos e excluídos. As conseqüências de nossa tolerância, indiferença e comodismo, que se expressam também diante de várias outras questões sociais, são as piores possíveis: aumento de crimes como seqüestros, assaltos e assassinatos. É muito claro que a violência está intimamente ligada à falta de justiça neste país. Só não vê quem não quer, só não muda quem não quer mudar.

Quanto ao Estado, sua maior responsabilidade é em não criar condições mais dignas para o grosso da população: as camadas pobres e os excluídos do sistema. O que o Estado tem feito muito bem é a manutenção de uma ordem social injusta. A conseqüência destas políticas nefastas só não geram uma implosão social, porque a rede judiciária-policial fazem o controle social
, precário, mas ainda suficiente para intimidar os mais pobres. Até as paredes das mansões dos Jardins (bairro nobre da capital paulista) sabem que o sistema penal brasileiro foi feito para os pobres! O Estado amedronta as classes mais desfavorecidas. Por sua vez, estas não se revoltam e aceitam, no seus limites, a ordem social desigual, uma vez que acreditarem na legalidade, na democracia e que um dia este país será mais justo. Mas o Estado não mais atemoriza o crime organizado, que vem explorando o medo da população e os pontos fracos do próprio Estado, desafiando-o com táticas similares às máfias italianas e aos grupos terroristas como Al Qaeda.

Infelizmente, o que se acompanha através da mídia é uma pronta resposta maniqueísta, transmitida pelos setores mais conservadores da sociedade civil, apoiados pelo pânico geral de uma população amedrontada e sedenta por "sangue" contra "os bandidos". Mais uma vez, as ações recentes do PCC são figuradas pela dialética do "bem" versus "mal", dos "policiais" versus "bandidos", dos "cidadãos de bem" versus "os do mal"... Os pecados são imputados unicamente aos "bandidos", desprezando-se a complexidade da realidade, embora está seja bem nítida. O discurso do bem versus mal não é utilizado por acaso. Serve tanto para camuflar a realidade mais complexa - e que, para mudar, requer medidas que podem contrariar interesses de grupos poderosos -, como também explicar de modo simplista a população, que diante de clima de indignação, apoiaria medidas de endurecimento e repressão, mesmo que violem direitos elementares dos indivíduos e a legalidade constitucional.

A culpa é dos Direitos Humanos

E críticas e mais críticas aos "Direitos Humanos", aos quais os grupos mais reacionários atribuem a grande culpa pelas ações dos criminosos. Estes setores, muito influentes na teia social, responsabilizam os "Direitos Humanos", ou seja, suas políticas, pelos crimes na sociedade, já que os DHs "protegeriam os bandidos" de uma punição rígida e "merecida".

É curioso que são nos países mais desenvolvidos do mundo que os DHs estão bem mais consolidados, as disparidades sociais são muito menores e a qualidade de vida é mais digna. Resumindo, os direitos humanos são parte essencial dessas sociedades, consideradas mais justas.

No Brasil, a conotação para Direitos Humanos é usada muitas vezes de modo equivocado - especialmente pelos grupos mais conservadores -, já que são um dos principais movimentos organizados na sociedade civil a constrangerem e contestarem as arbitrariedades sociais, econômicas, jurídicas... Não é surpresa que os mais interessados em atacar os DHs são também os maiores defensores do status quo dominante.

A realidade em que vivemos é mais complexa do que uma batalha de bem ou mal - infelizmente é forte o discurso dos setores sociais que insistem em lidar com a coisa como se fosse aquela brincadeira de nossa infância, o polícia-e-ladrão. O Estado deve ter firmeza, sim, contra o crime organizado. Afinal, a sensação de impunidade estimula ações ousadas de criminosos. O que se enfrenta é um inimigo ágil, com ações imprevisíveis, aos moldes de grupos mafiosos e terroristas. Neste aspecto, o Estado já sai em desvantagem, por falta de coordenação geral de seus serviços de inteligência.

Mas o enfrentamento contra as quadrilhas não é o bastante, é apenas a ponta do iceberg. As medidas mais eficazes para o desestímulo da vida no crime não são de caráter jurídico-policial - ou melhor, somente nestes campos. É óbvio que são mais urgentes medidas de caráter criminal, dentro do Estado de Direito, contra as organizações criminosas. Mas se estas não vierem em conjunto com outras ações urgentes (futuras e de longo prazo) no campo socioeconômico, que visem a redução da exclusão social neste país, a criminalidade e a violência continuarão a ser a ponta-de-lança do caos social que aflige a sociedade civil. Pior ainda: arregimentarão novos adeptos, prontos a se engajarem no mundo fora-da-lei. Afinal, ser criminoso é uma opção de vida em uma sociedade tão cruel quanto a nossa (já dizia o cientista político Hélio Jaguaribe que o "Brasil tem um exército de reserva do narcotráfico"), em que as forças de segurança são mal pagas e muitos de seus funcionários acabam seduzidos pela corrupção. [r]

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