2.5.06

 

das boas intenções: caridade,
piedade e convivência

por daniela alarcon

As três musas do pensamento politicamente correto. Caridade diz ao pé do ouvido, voz maternal: doe ao próximo o que não te serve mais. Piedade estreita os olhos e sussurra: apieda-te de teu irmão em dificuldade; vista teu olhar mais condoído ao passar pelos desvalidos, e provarás que é sensível a sua dor. Não desvia, diz a outra, Convivência: aja com naturalidade. Alguns leram e decoraram a cartilha; os ensinamentos foram morar em outros que nem sabiam os ter assimilado. A obra maior das três musas é a imobilidade: cumprem-se suas pequenas ordens, enquanto a grande ordem das coisas segue inalterada. Em São Paulo, naqueles três dias de abril, Piedade, Caridade e Convivência escolheram três endereços.

Rua Cardeal Arcoverde, sexta-feira, 8:30 da manhã, ônibus que não passa.
Sono quando chega o homem de boné. Eu o vejo com a visão periférica, tanto que mal o noto. Quando viro o rosto, a ação já transcorre há algum tempo. Mas acho que não foi exatamente por causa do movimento que virei, as roupas sendo arremessadas uma a uma no chão. Foi mais quando vi que todos do ponto olhavam na mesma direção, aquele ar entre o constrangimento e o não-é-comigo. Só que dessa vez, havia também represália nesses olhos dirigidos ao homem, quer dizer, aos homens. São dois. O segundo em tudo difere do primeiro (olhos sem brilho, sobrancelhas meio arqueadas e voz moderada, nem sombra da exuberância raivosa de atirar o par de tênis rasgados longe). Recolhe as peças que tornam a voar e voar, e assim sucessivamente. Escandalizados, os silenciosos olham. “Mas você precisa disso, homem; a gente tem que ser humilde e aceitar; a mulher queria te ajudar. Pára com isso”, o segundo tenta apaziguar o primeiro. “Ajudar? Ajudar? E eu lá quero esse tênis velho e essas calças imundas? Isso que ela me deu não devia dar pra ninguém. Eu não preciso desse lixo”. E ele ainda blasfema, pensam os olhos do ponto de ônibus. Até que um diz pro segundo, que deixe o outro, mal-agradecido que era, que leve as roupas para ele. “Vou levar, vou levar, sim senhor”, ele movimenta a cabeça de pronto, obedecendo a ordem. Os dois vão embora, o primeiro, secundado pelo segundo, este um cabide das sujidades do que o primeiro dispensou. Os olhares que presenciaram a infâmia (hoje o dia começou cedo!) rapidamente se dispersam conforme passam os ônibus. (Eu queria ter um espelho e me certificar que meus olhos não eram doentes como aqueles).

(A partir daqui a autora autoriza-se a se referir a si própria em terceira pessoa para se sentir menos ridícula.)

Rua Maria Paula, sábado, cerca de 16 horas, atrasados.
Sentado no canto da calçada. Marrom no rosto, roupa, cabelo e mãos. Cabe aqui lugar para beleza? Mal espera que passem, fustiga ligeiro: “Tá olhando o quê? Quando olham pra mim, se for homem, já pergunto logo se é viado ou se é polícia; e se é mulher, então, é puta”. São dois que caminham, é apenas ela quem olha. (Ela olha, mas sabe exatamente por quê?) Ele aprendeu a não olhar; anos saltando do ônibus no Terminal dom Pedro pra andar até o trabalho, viadutos e avenidas, homens marrons em profusão. Eles soltam as mãos. Há claridade no céu, estão quase chegando, eles haviam acordado ser felizes hoje. Estão bem. Mas as mãos meio zonzas se procuram de novo; os dois evitam se olhar.

Avenida Henrique Schaumman, domingo, uma da tarde sonolenta, ressaca de vinho.
O homem está nu, na avenida. Quer dizer, não completamente nu: a camisa persiste, a calça é que já vai pelos joelhos. Por enquanto ele é uma pequena figura. A rua está toda meio deserta hoje. Mais uns passos, de figura que era, ele se converte em um ser com feições; mais passos, ele cheira; mais passos, ele pode esticar a mão e quase tocá-los. Decisão rápida: estreitar-se entre a árvore e o homem? (Havia a opção de atravessar a rua e desatravessar depois. Já discutida, quando os dois o avistaram, e vetada. Uma pessoa como nós, o que é que há? Fariam mal a ele se desviassem como se desvia de um bicho, seja por medo ou nojo ou o quê). O amigo está inquieto. Ora, querido, deixe disso. Cruzam. Estão fazendo bem, mais um dois três passos. Passou. Quer dizer, quase: o homem lamenta, a tempo (e volume) de ser ouvido. “Mas ninguém dá sossego, não é possível nem cagar em paz”. [r]

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