15.5.06

 

o jogo começou, aperte start (ou não)

por fábio brandt

Ataques a delegacias, policiais mortos, tiroteios pela cidade, ônibus incendiados. Pânico e revolta da população. Essa é a situação extrema em que se encontra a cidade de São Paulo. Claro que nem todas as partes da metrópole foram (pelo menos, por enquanto) palco da guerra urbana travada entre bandidos e policiais, nem todas as pessoas presenciaram as cenas do conflito. Neste ponto, é importante lembrar daqueles agentes responsáveis por transmitir as informações indispensáveis para a vida das pessoas. Sim, os jornalistas.

Através dos jornais, soube que os ataques dos bandidos foram iniciados em represália a uma tentativa da polícia de neutralizar as ações de quase 800 dos mais perigosos bandidos ligados ao PCC. Paralelamente a este motivo, alguns outros também foram apresentados, afinal de contas é um conjunto de fatos que faz a situação atingir as proporções que tomou e não uma razão isolada. Os bandidos também queriam reaver as televisões que adquiriram para ver a Copa do Mundo na cadeia e queriam poder sair da prisão no dia das mães -exigências que o governo se negou a atender.

Cobertura Holywoodiana

Não fosse pela minha própria constatação da situação trágica em que se encontra São Paulo, eu pensaria que algum descendente de Orson Welles virou assessor de imprensa e plantou esta pauta-pegadinha na grande mídia. A situação é colocada como se a Quadrilha da Morte, Dick Vigarista, Lex Lutor, Pingüim e companhia não-limitada de vilões tivessem feito conchavo para atacar a metrópole.

O trânsito está bagunçado, o metrô está um caos, os ônibus não circulam normalmente. Só falta os semáforos piscarem luzes azuis, os hidrantes dispararem jatos de água e o dirigível da Goodyear emitir a voz de um chefão do crime anunciando o domínio da mente das pessoas.

Talvez essa minha impressão seja por conta de meu doentio imaginário de leitor de ficção. Mas o que é ficção? Os livros de Huxley e Asimov ou a grande imprensa brasileira? Acho que não entendi ainda qual a relação entre a espetacularização da vida e melhores relatos jornalísticos - deve ser uma das lições que ainda não tive, por enquanto só sou estudante de jornalismo.

O fato é que não se abre mão de promover o espetáculo da guerra urbana. Quadros ilustrativos, estatísticas, perfis de policiais e bandidos, ilustrações do aparato bélico usado e do que ainda pode ser posto em prática. Tudo apresentado como num filme do Van Dame ou do Chuck Norris, ou como num jogo de Playstation 2, que torna a imagem da ficção muito próxima da imagem do real.

Mas é assim, eu já deveria saber. Um fato extraordinário deve ser representado de maneira correspondente, destacando-se dos outros assuntos. Essa lição eu já devia ter aprendido, pois sou da geração que passou a adolescência servida pela mídia pós-onzedesetembro.

Sempre tinha uma edição da Veja para eu ver durante o início da guerra do Iraque. Na sala do colegial, acompanhávamos semanalmente a ficha técnica e as ilustrações em 3D dos equipamentos bélicos dos americanos. O poder de guerra dos EUA impressionava qualquer um, chegava a ser uma ótima diversão imaginar aqueles aviões e tanques em ação, como nos filmes que crescemos vendo. Do lado iraquiano, a revista publicava a foto de gente na miséria, gente ferida. Diferente da imagem dos yankees, essa não impressionava encantando, ela chocava dando dó, pena, raiva. Num vídeo game, qual dos dois personagens você escolheria para jogar?

Maniqueísmo facilitador

Sim, dois personagens. A mídia constituiu na época da guerra do Iraque dois lados, um pelo bem e outro pelo mal, seguindo uma linha dualista na qual um pólo não interage com seu oposto, nem por ocuparem o mesmo espaço nem por um influenciar a existência do outro. O mesmo ocorre na cobertura da guerra urbana, de um lado os homens maus - os integrantes do PCC, mercenários, seqüestradores, ladrões e congêneros - e, de outro, os defensores da população e do aparato de Estado - os policiais e os governantes.

Os relatos não incluem a elucidação dos fatos. A complexa interação entre problemas e atores sociais é deixada de lado ao se reduzir, maniqueisticamente, a realidade. Como o crime organizado se desenvolveu nas costas da recriminação dos movimentos sociais pelos governos oficiais não é uma questão abordada pelos jornalistas nesta cobertura. Como o crime organizado se mantém garantido pela corrupção dos políticos e da polícia também não é nem questionado. Talvez fosse necessário pensar que os dois lados estão muito mais próximos, e mais interligados do que parece.

No máximo, a legislação e o Estado de direito são questionados como as raízes profundas do problema. Defende-se a ação em regime de exceção, para extermínio dos integrantes do PCC. Pronto, essa é a solução - pelo menos até uma nova guerra começar. Faz-se pressão sobre o legislativo para que "medidas eficientes" sejam aprovadas - como o aumento do tempo das penas e a redução da maioridade penal - o que, por si só, diminuiria a criminalidade.

Faz-se de tudo para a população alinhar-se ao governo e endossar as políticas emergenciais conduzidas exatamente pelas mesmas pessoas que há anos ignoram a possibilidade de um caos social. Garantir a segurança da população compreende muito mais do que a polícia vencer os bandidos. Trata-se da formulação e aplicação de políticas públicas integradas, relevando-se as particularidades de cada parte do espaço heterogêneo da cidade e da demanda por mudanças dos diferentes grupos sociais, cada qual com suas particularidades.

Pensar o problema como resultado da interação dos diversos atores sociais pode ser um começo para se visualizar a questão em sua ampla complexidade e não reduzi-la a personagens de vídeo-game disponibilizados pela mídia.

A cidade tem uma dinâmica complexa, que até pode ser representada com uma linguagem simples e clara, como pretende fazer o jornalismo. Mas, simplificar mudando a realidade implica distorcer informações e não contribuir para a resolução dos problemas profundos da metrópole. [r]

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comentários:
As ações do PCC em resposta à decisão do governo estadual de isolar líderes da facção criminosa são o fim da picada. O que falta é o PCC virar um partido de esquerda, pois parece que o PT já virou facção criminosa.

Um abraço

Marco Aurélio
 
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