17.5.06

 

sinais de sanidade: loucura nas ruas

por daniela alarcon e leandro oliveira
fotos por daniela alarcon

[Louco de alta tensão] [Ame a louca mente] [Sou, mas quem não é?] [A loucura está nos olhos de quem vê]

E muitos viram o pequeno grupo animado diante do prédio da Gazeta. A roda de samba, sempre de samba – ainda que as músicas escolhidas fossem ora dos Demônios da Garoa, ora de Raul Seixas, não podia ser descrita de outro modo: uma roda. A entrada e saída dos músicos, e a lógica imprevisível de seus instrumentos, não pareciam resultado de ensaios anteriores. Entrosamento que impedia a roda de parar.

“Essa gente é interessante”, riu uma mulher, desprezando o apelo direto das faixas. Eles ainda eram os outros. E ela, do alto de sua sanidade, prosseguia inabalada. Os que passavam, mesmo que sem a expressão de desdém, não consideravam unir-se à Parada do Orgulho Louco, criada como parte da Semana Anti-manicomial com o intuito de convidar a população a participar das discussões e da mobilização.






São 19 anos de luta anti-manicomial. Até 2001, a assistência a portadores de transtornos mentais era regida por um
decreto de 1934, que dispunha “sobre a assistência e proteção à pessoa e aos bens dos psicopatas”. Com a I Conferência Nacional de Saúde Mental e o II Congresso Nacional dos Trabalhadores da Saúde Mental, ambos de 1987, nasceu o movimento social anti-manicomial, e o dia 18 de maio foi escolhido como a data de luta. O objetivo é construir uma sociedade sem manicômios. Não se trata de desresponsabilizar o Estado e abandonar os doentes mentais, e sim de possibilitar a sua inserção na sociedade, associada ao tratamento sem internação.

Frente a uma legislação considerada retrógrada, foi proposto em 1989, pelo deputado federal Paulo Delgado, um projeto de lei que previa a interrupção de internações em hospitais psiquiátricos e a desativação progressiva, dentro de cinco anos, dos hospícios existentes. Com algumas alterações, o projeto foi aprovado em 2001. A
lei n° 10.206, que “dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental”.

Essa lei assegura direitos aos doentes mentais – direitos que o decreto, cujo foco são questões administrativas, não garante. Por exemplo: “ter direito à presença médica, em qualquer tempo, para esclarecer a necessidade ou não de sua hospitalização involuntária” ou “ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis”, entre outros.

Embora considerada um avanço, a legislação que substituiu o decreto não excluía a possibilidade da internação. Entre os problemas apontados pelo Fórum Paulista de Luta Anti-Manicomial estão a falta de clareza no artigo 4° (“a internação (...) só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes”), e o artigo 3°, que proíbe a internação em instituições asilares – ou seja, por tempo indeterminado – sem, contudo, levar em consideração a escassez de alternativas.

As instituições que representam uma alternativa aos hospitais psiquiátricos são os CAPS e NAPS (Centros e Núcleos de Apoio Psicossocial). Os pacientes que freqüentam esses espaços recebem acompanhamento psicológico e psiquiátrico, e participam de atividades como terapia ocupacional, psicodrama, oficinas de produção de texto e artes plásticas. O CAPS Itapeva, fundado em 1986, foi a primeira dessas instituições. A partir da
portaria n°224/92 do Ministério da Saúde e da NOB 96 (Norma de Orientação Básica, do SUS), a rede de CAPS e NAPS (Núcleos de Assistência Psicossocial) foi expandida para outros municípios brasileiros.






Gregório Carneiro
Gregório Carneiro
Gregório freqüenta o CAPS há cerca de quatro anos; de escrita, já são mais de trinta. Vestido para a festa, caminhava na Parada com seu livro recém-publicado debaixo do braço. Conversamos um pouco e ele logo mostrou seus poemas. “Quer comprar?” E antes que eu me adiantasse na caminhada, Gregório despediu-se com a estrofe de uma modinha: “Lambari tá pelejando / pra subir na cachoeira / Eu também tô pelejando / pra casar com a fazendeira”.

A Parada do último dia 13, levada a cabo sem patrocínio, foi um esboço do que se pretende realizar nos anos seguintes. Ainda que de pequenas proporções, reuniu membros do CAPS Itapeva e do Fórum de Luta Anti-manicomial. E onde a Paulista encontra a Pamplona, São Paulo encontrou Guarulhos: em sentido contrário, chegara um grupo do CAPS de Guarulhos, com poéticas faixas desenhadas e coloridas em papel craft. O encontro foi uma festa, que continuou no CAPS Itapeva.
Transposto o muro – onde fora gravado o aviso em stencil: morte ao ego –, todos que vieram pela primeira vez foram convidados a conhecer as dependências. Uma senhora sorridente trouxe o caderno de visitantes para que eu assinasse. “Onde eu consigo um adesivo desses?”. Antes que eu termine a frase, ela já colou o dela em meu peito: “Diversidade: inclua-se nessa causa”.

Em quase todas as salas há telas, esculturas e instalações. Seguindo os preceitos dos pioneiros Nise da Silveira, fundadora do Museu de Imagens do Inconsciente, e Osório Cesar que, desde os anos 20, estudou a expressão artística dos internos do Juquery, a produção artística dos pacientes é incentivada no CAPS. Este ano, somaram-se ainda obras de jovens artistas plásticos, com curadoria de Eric Frade, que ocuparam o segundo andar do sobrado. O propósito da mostra conjunta é estabelecer um diálogo e agregar diferentes setores da sociedade em torno das bandeiras anti-manicomiais.


O cupim está comendo a máquina anti-insanidade

Jornada nas Estrelas, de Cleuza Ferreira Souza, era para estar dentro de um aquário. No improviso, ganhou uma pequena fonte a seu lado e nada mais. O marido de Julia Katunda, psiquiatra do CAPS, recolheu umas sucatas que hoje compõem a obra de Tatiana Mayer: um manequim, bebedouros de passarinho, papéis e chapinhas de metal.

Como sintomas, as dificuldades do cotidiano no CAPS apontam para as deficiências na política pública de saúde mental no Estado de São Paulo. Julia enumera os problemas: centralização das decisões, gestão inadequada do orçamento, falta de continuidade dos projetos na área, baixos salários. Em tais condições, os funcionários, muitas vezes, apenas cumprem burocraticamente suas atribuições, e nada mais.

A rotina se altera, contudo, quando o paciente consegue envolver os funcionários, rompendo a barreira da apatia. Tatiana revelou seu talento, até então desconhecido, nas artes plásticas. Kalasan, sempre anti-social, hoje se sociabiliza por meio do violão e dos textos que produz. Convertem-se, dessa forma, em “agentes de terapia”. E todos – funcionários e pacientes – se engajam coletivamente em um projeto, driblando a falta de recursos.

Inspirado em Lygia Clark e Helio Oiticica, o grupo de artistas do CAPS havia planejado um caminho sensorial, perpassando a sala de exposição: aromas, sons e outros estímulos. A Pfizer comprometera-se a patrociná-lo, com uma doação; na hora do vamos ver, chegou apenas uma parcela ínfima do que fora acordado. Improvisaram, então, um caminho de madeira. Substitutas do caminho sensorial, as paredes de madeira não mais existem: foram comidas pelos cupins. Que ameaçam agora a obra de Paulo Sérgio Diniz Luz, Anti-insanidade, também em madeira.

Tatiana Mayer
Tatiana Mayer
Dois minutos que eu estou na sala, olhando a obra intitulada Salva-vidas infindus infinitus, quando Tatiana chega: “Você quer comprar essa máquina?”. Como eu titubeio na resposta, ela enumera as atribuições do aparelho, capaz de regenerar o ser humano – foi tudo arquitetado em detalhes, desde a cápsula onde o DNA é depositado, até os intrincados mecanismos curativos. Tão intrincados, que eu me admito aqui incapaz de reproduzi-los.

Tão pronto eu revelo a Tatiana que não tenho dinheiro para comprar um objeto tão valioso, ela se desinteressa de mim. Travestiu-se hoje de galerista: semblante tenso, preocupada não apenas com a venda de sua produção, como com a dos colegas: “Doutora Julia, ninguém até agora quis comprar os quadros? Nem a máquina?”. Se alguém manifestar interesse, ela deve ser avisada. E prossegue na ladainha da qual se ocuparia boa parte da tarde: “Quem quer comprar uma máquina? Um quadro?”


Um desperder de si

A máquina de Tatiana compõe-se de uma série de materiais, postos juntos, colados. Tal como seria um indivíduo psicótico, na metáfora de Julia. De acordo com ela, a psicose está no espaço da desorganização. “É um desperder de si. Você perde a lógica. Aí você vai grudando o que você encontra. São as pessoas esquisitas, são as pessoas que vêm grudadas”.

Chico Science tocando lá fora – desorganizando posso me organizar – faz eco nas palavras de Julia. Ela critica a reação da razão que, interditando a psicose, circunscreve-na ao campo da patologia, em oposição aos cânones da normalidade. A razão nega que possa haver outra forma de ser que não a hegemônica. Mas as peças ali expostas insistem na alteridade: a cabeça engaiolada, os corpos dançando nos desenhos, sexos floridos, esculturas lânguidas ou agônicas, gritos do corpo e da mente. Cada peça encerra em si uma narrativa a ser desvelada.

Shirley foi tomar um lanche e abandonou atrás de si um pequeno séquito. Corpos alongados e curvos, seios e barrigas, bocas entreabertas, as estatuetas femininas por ela esculpidas distribuíram-se em uma sala no segundo andar. Detrás de todas elas, posição de quem vela por essas mulheres tão absortas em seus próprios corpos, a mãe de Shirley ocupa uma cadeira. Tímida e silenciosa, dona Isaura quer se confundir com o barro frio. Mas vem prontamente conversar, disposta a contar as dificuldades de ter uma filha doente. Ou ainda, o prazer de poder dizer que, hoje, compreendida a doença e a forma de tratamento, é mãe de uma filha normal.

Vegetação Venérea, de René Rogério Pereira
Vegetação Venérea
Rose, por sua vez, é Rosilene Psique. A obra Vegetação Venérea, de René Rogério Pereira, contrapõe o corpo feminino ao prontuário médico de Rose. Peça de acesso restrito, por meio da qual o psiquiatra tem o poder de legislar sobre a vida do paciente, foi deixado às vistas de todos. Prontuário número 69, Rosilene, filha de Eros e Vênus. Escolaridade: orfanato e FEBEM. Múltiplos endereços (rua Augusta, rua Aurora, Cracolândia), é “terapeuta sexual”, de sexo “total” ou “indefinido”.

Encaminhada pela polícia, Rose recebeu tratamentos anteriores em casas de correção, FEBEM e conventos. E dentre os motivos da consulta, o principal: “delírio de que seu corpo seja a cura dos males do mundo”. Um poema escrito por ela, anexado ao prontuário, atua como recomendação de tratamento: “(...) Entre a overdose e o espasmo orgástico / entre as luvas de borracha, estetoscópio / e as coxas úmidas / escolha / A vegetação venérea / que fauna as ruas / e flora as casas (...)”.

Julia também produziu uma pintura, exposta na parede oposta a Jornada nas Estrelas. Posa para foto, junto a sua obra, e pede que eu mencione seus outros nomes na reportagem. Ingênua: “É seu nome artístico?”. “Não, são meus nomes psicóticos”. Expressão de dúvida. “Eu fiz uma adesão à psicose”, explica-me. Pois Julia Katunda é também JK Rolando, que assina o quadro, e é ainda Julia de Garcia.
Para bailar la bamba no aparelho de som; o dia frio mas ensolarado. A festa da rua Itapeva vai longe. Duas mulheres – a do esmalte amarelo e sorriso cândido; a da blusa amarela e sorriso sedutor – estão dançando na porta do CAPS. Julia bem que me dissera, invertendo a perspectiva corrente, que se a porta do hospício está aberta, é porque a loucura está na rua.




[Viva a loucura ávida de vida]




Salva-vidas infindus infinitus, de Tatiana MayerSalva-vidas infindus infinitus, de Tatiana Mayer Salva-vidas infindus infinitus, de Tatiana Mayer


Exposição dos Novos Artistas
Gaiola Espacial, de Raimundo da Cruz Cordeiro; ao fundo: Voto, de JK Rolando1. Exposição dos Novos Artistas 2. Quadro em exposição no CAPS Itapeva 3. Gaiola Espacial, de Raimundo da Cruz Cordeiro; ao fundo: Voto, de JK Rolando





A Semana de Luta Anti-manicomial estende-se entre 9 e 26 de maio, com atividades previstas em diferentes pontos da cidade. Os debates – no Instituto de Psicologia da USP e na PUC – são entremeados por apresentações artísticas, música e feira anti-manicomial. Serão ocupados o vão livre do MASP, a praça da República e a praça Benedito Calixto, em Pinheiros; na Virada Cultural, um coral cênico se apresenta em apoio à luta anti-manicomial. E uma programação paralela acontece no Centro de Convivência e Cooperativa São Domingos, na zona sul de São Paulo. Mais informações sobre a programação no site http://brasil.indymedia.org/pt/blue/2006/05/353034.shtml.


Fontes:
Jornal de psicologia – CRP SP
Revista Comciência

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comentários:
maravilhosa reportagem. estão de parabéns.
 
parabéns leandro e dani. animal.
 
acho q por todos, como eu, que lutam apaixonadamente pela causa, agradeço pela maravilhosa reportagem.
sucesso a vcs.....sempre!
 
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