12.5.06

 

sobre bandidos, filósofos e
caixas de supermercado

por lucas bonolo

Contexto

Europa. Noroeste italiano. Gênova. Centro històrico, 4 horas da madrugada de uma quarta-feira. Saída de uma festa de estudantes universitários. Rua próxima da zona portuária, conhecida pelos altos índices de violência (para os padrões europeus) – imigrantes ilegais, batedores de carteira, traficantes e gangues. Há duas semanas, nesta mesma regiào, morrera uma garota de 25 anos, com uma facada na garganta. Motivo desconhecido. Talvez acerto de contas, talvez pura violência urbana. De qualquer modo, crime jamais ocorrido em Gênova: revolta da populaçào, manifestações exigindo mais segurança nas ruas do centro. A situação, que já era grave – roubos, distúrbios noturnos, brigas, medo –, chegara ao limite do tolerável. Promessa da prefeitura: mais policiais na rua, mais vigilància, maior empenho e eficácia no que toca à segurança pública e ao bem-estar dos cidadãos. Gênova. Centro històrico, 4 horas da madrugada de uma quarta-feira. Nenhum policial na rua. Aproxima-se um sujeito estranho.

Diálogo


(4h10. Numa rua ali perto, passa uma viatura da policia do exército)

Eu: Ei, ei! Espera!

(Eles param, o vidro se abre. De dentro da viatura…)

Policial 1: “Ei, ei!?” Isso era pra nós? “Ei, ei?”

Eu: É… era pra fazer vocês pararem o carro, porque eu queria dizer que

Policial 1: “Vocês?” Acha que està falando com quem?

Policial 2: Assim você fala com o seu pai, não conosco…

Alessandro: Não, senhor… é que ele é estrangeiro.

Policial 1: Ah, estrangeiro… de onde?

Eu: Do Brasil. Olha só, agora pouco ali naquela rua havia um homem meio perigoso. Veio ameaçar a gente, e logo depois viu 3 garotas sozinhas e foi ali mexer com elas. Talvez…

Policial 1: Então você está denunciando esse homem?

Eu: É… sim… é que ele…

Alessandro: Nós só queríamos dizer que ele estava molestando as pessoas na rua. Mas não por nós e sim pelas meninas que estavam sozinhas ali.

Policial 2: Então vocês estão denunciando este homem! Vocês têm um documento?

Policial 1: Quero ver os seus documentos. Vocês estão portando um documento, certo?

Eu: Sim… mas, é… por quê? Não entendi… o senhor quer ver a “minha” identidade?

Policial 1: Exatamente, e é bom você estar com ela aqui, porque senão terá que vir conosco.

Policial 2: Mas “do Brasil”? E o que vocè faz aqui em Gênova? Saiu do Brasil pra vir pra cá... ahn!

(Enquanto entrego minha identidade)

Eu: Estou aqui pra estudar.

Policial 1: E o que você estuda?

Eu: Filosofia.

Policial 1: Veio pra Itália estudar “filosofia”? E não tinha nada melhor pra fazer?

Policial 2: Você sabe que a Universidade de Gênova é uma merda, não? Boa mesmo é a de Florença, ali onde mora minha família...

Policial 1: E você, o que faz da vida? Nada?

Alessandro: Estudo arquitetura. Mas eu sou italiano.

Policial 2: É... a faculdade de arquitetura aqui até que é boa. Mas não melhor que a de Florença. Agora... “filosofia”? E o que você pretende fazer com “filosofia”?

Eu: Na verdade, no Brasil faço jornalismo. Como aqui não tem esse curso, faço algo que me serve. Mas me formarei em jornalismo.

Policial 1: Eu não consigo ver pra quê serve filosofia. Que trabalho você faz com ela?

Eu: Por enquanto ainda não trabalho, só estudo. Mas depois é possível...

Policial 1: Sabe que tem um monte de gente formada em filosofia que agora trabalha como caixa de supermercado? Pois é, está cheio...

Eu: (…)

Policial 1: Toma aqui seu documento. Boa noite, rapazes.

Eu: Mas e…

(O vidro se fecha e a viatura parte, seguindo a mesma estrada de antes)

Faculdade pra quê?

Depois dessa dispensável experiência, me arrependo tantíssimo de não ter perguntado em qual curso superior eram formados aqueles policiais. Porque, se existem tantos filósofos graduados que hoje trabalham como caixas de supermercado, tenho absoluta certeza de que eles são capazes de fazer do seu trabalho uma atividade digna, respeitosa e útil – e reconhecê-la como tal. Mas os advogados, economistas, engenheiros, médicos, biólogos, arquitetos e filósofos que exercem a profissão de policial (como estes dois) ainda não perceberam a importância e a falta que faz um serviço de segurança pública bem executado.

Na verdade, pouco importa no que eles se formaram, ou mesmo se não fizeram nenhum curso superior. Bastaria que pudessem enxergar um pouco adiante, para perceber o quanto são infelizes suas escolhas no modo de agir e se portar diante de seus concidadãos – estes, ansiosos por um pouco mais de paz em seu caminho de casa. E estou falando de Itàlia, o que se dirá então do Brasil. Talvez eles ainda não tenham percebido justamente isso: que tambèm eles são cidadãos, e não um grupo à parte, “superior” e intocável. Cidadãos como todos nós, que, com o sem a farda, estão sujeitos aos mesmos problemas e preocupações.

Da maneira como se portam, não trazem absolutamente nada de bom. São apenas “soldados invisíveis”, que patrulham as ruas para si mesmos e apenas contribuem para o esteriótipo que a polícia carrega. Estereotipo que eu acreditava existir só no Brasil. Mas não. Não são somente os grupos brasileiros que cantam a ineficácia policial. Estas são canções cantadas na mesma língua, não importa o país onde sejam escritas. Pois me parece que è um problema sem pátria, que gira as nações como a pior de todas as gripes.

Enfim, gostaria tanto – e talvez seja esse um dos meus grandes desejos na vida – que os policiais do mundo fossem como a gentil e prestativa senhora do supermercado, que, formada ou não em filosofia, me vende com a maior dedicação o leite e o pão de todas as manhãs. [r]



comentários:
Será que atribuir a violência de Gênova a uma política de segurança pública ineficaz é correto? Gênova é uma cidade portuária, localizada na Europa, de frente pra África. Trata-se de uma porta de entrada aos imigrantes africanos.
Vejo as relações sociais vividas nela como reflexo da imensa desigualdade social vivida no mundo. Pela localização e características, Gênova sente na pele os problemas da desigualdade.
Li o seu texto da seguinte forma: norte da Itália, desenvolvido, alto grau de escolaridade e as pessoas cometem o mesmo erro que no Brasil e talvez em outras partes do mundo: confundem excesso de violência com baixa qualidade na segurança pública, ao invés de atribuir ao grande problema da desigualdade social no mundo e lutar para mudar isso.
 
Atribuir a violencia de genova a falta de segurança publica è sim correto... O crime referido no texto foi entre italianos, o "sujeito estranho" era italiano... è muito comum ver pelas ruas de genova italianos repletos de drogas, facas e caes. Outro dia um foi preso pq estava com uma faca de açougueiro... Claro que existem os imigrantes ilegais, e toda a desigualdade de que fala... concordo com vc... Mas um orgao de segurança publica è indispensavel em qq lugar do mundo, huguinho... e no fim das contas, o foco da minha critica è a policia em si, muito parecida com a do brasil....
 
O que pretendo nao é uma crítica ao texto, mas apenas um olhar diferente. A mesma situacao pode ter diferentes abordagens e isso nao pode ser ignorado. Nao precisamos defender bandeiras, muitas vezes reducionistas e que simplificam uma realidade extremamente complexa. Diferentes olhares para uma mesma realidade é importante na construcao sociológica de determinado problema e busca de solucao.
 
Qual o propósito de ser de um comentário anônimo?
 
Olhar muito pertinente... Nao vejo bandeiras defendidas... Como disse, no fim das contas, a critica vai para o trato que a policia tem com o cidadao, a pessoa que caminha pela rua e de repente precisa do auxilio de um orgao publico... Assim como outras preocupaçoes (sociais), tambem essa è importante, ja que reflete muitos dos problemas pelos quais passamos diariamente em nossa propria cidade (de um simples "enquadro" a uma batalha entre policiais e estudantes - coisa que eu e outros colegas nossos ja sentiram na pele)... A historia esta ai pra ser vista, repleta de repressao e violencia policial... E as coisas tem sim conexao... è tudo fruto de uma mesma raiz... E agora me recordo de uma historia que o pedrinho contou, de um estudante mexicano que tava na hora errada, no lugar errado (em lyon, epoca daqueles "protestos" nas ruas) e foi deportado da frança (alem de apanhar e ser humilhado pela policia) sem ter feito nada... enfim...

sobre ser anonimo, escrevi "al volo" e saiu assim... pergunto eu, qual è o proposito de perguntar qual è o proposito...???
 
Luquinha: nao é crítica ao olhar!!!! Eu explicitei o meu e você o seu. Ficou claro no seu texto o que você quer dizer e no meu comentário o que eu quero dizer. São duas coisas diferentes, abordagens diferentes. Quando disse: "O que pretendo não é uma crítica ao texto, mas apenas um olhar diferente" não é pra dizer que seu olhar é errado, mas que é importante também ver a mesma situação de outras formas. A discussão se enriquece assim, não é seu olhar ou texto que se empobrecem... Por que ver dualismo em tudo??? Pra que adotar postura defensiva sempre??? Essa duas perguntas não sao pra vc diretamente, mas pra todo o ocidente...
 
eu entendi, huguinho! e concordo tambem com o seu olhar... na verdade nao tinha pensado dessa forma ainda... como ja disse, eu estava mais preocupado em comentar a atuaçao da policia aqui de genova...
sò uma coisa, nao sei se podemos comparar genova com o brasil, por exemplo... pq vc estava falando que è uma cidade de porto e tal, que chega muito imigrante etc... isso è verdade. mas aqui uma pessoa que trabalha de faxineiro, lavador de pratos, ou um misero garçom (como eu), consegue tirar uns bons trocados... sem falar do trabalho informal que o turismo daqui proporciona... e sao trabalhos que nao pedem diploma de universidade... e tem vagas... as vezes parece que os imigrantes que vendem drogas e roubam escolheram a malavita pq è mais facil...
mas tb è complicado dizer isso, eu sei... tem muita coisa envolvida, problemas sociais que vem desde os paises de origem desses imigrantes, e que atravessam o oceano junto com eles...
enfim, no final das contas è oq vc disse mesmo: um grande problema social no mundo...

ps- estou contente! è o texto mais comentado do reverso... hehehehe
 
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