6.11.06

 

eu quero acreditar

por marcos angelim


Seis de novembro, segunda-feira brava, mesmo para um desempregado e aspirante a intelectual como eu. Um dia duro pela frente: ajudar o sogro a reparar a calçada de sua casa sob o sol escaldante do meio-dia. Não há pior tarefa para um cara habituado à caneta e ao teclado do que o trabalho braçal. Fazer e carregar massa, manusear a colher de pedreiro, juntar entulho...

Quanta habilidade se exige daqueles que não têm outra qualificação senão o raciocínio tosco e a força dos próprios braços para ganhar o pão! O que seria de você, caro leitor, se, de uma hora para outra, passasse a depender quase que somente da força física para viver? Mas não nos preocupemos com isso e voltemos ao relato, afinal não vai acontecer nem com você e nem comigo – privilegiados pelo acesso à educação, internet, ao trabalho intelectual, à renda...

O fato é que suei para consertar a calçada, e ao fim do trabalho – ainda sob um sol que deixou minha pele vermelha e ardendo – restava uma tarefa que me deixava assustado: carregar todo o entulho produzido para uma espécie de brejo no fim da rua – ordem incontestável do sogrão. Com certeza passava dos 31 graus.

É que nos bairros pobres, como o Itaim Paulista, a temperatura costuma ser muito mais alta do que nos Jardins, pois as árvores são muito poucas. A imagem do brejo, ao longe, se formava trêmula no fim da rua estorricada... "Ah, que vida sofrida a minha!”. Mas quando tudo parecia perdido, a sorte que freqüentemente agracia os bem-nascidos colocou um bom homem no meu caminho – um carroceiro. Talvez aqui caiba uma explicação.

Um carroceiro pode ser tanto um homem que guia um cavalo amarrado a uma carroça quanto um sujeito mais desgraçado que tem, ele próprio, de puxar a carroça atulhada. No Rio de Janeiro do início do século XX, os homens que puxavam carroças eram apelidados de “burros sem rabo”. No século XXI, essa alcunha se perdeu, mas a atividade certamente cresceu bastante.

O carroceiro que veio ao meu auxílio era dessa segunda categoria. Um homem pardo, de baixa estatura, mal vestido, com a barba por fazer, de boné e puxando um carro de madeira cheio de pesados sacos de lixo. Ora, esse sim era adequado para o trabalho. Era perfeito! Tinha a pele um tanto escura (minha cútis branca não foi feita pra isso... E os raios ultravioleta!? Não quero nem pensar!), estava uniformizado, tinha o veículo próprio e era profissional reconhecível em qualquer lugar da cidade...

Muito solícito, antes que o víssemos, ofereceu-se para ajudar, mas não deu o preço. Coitado, não deve ter MBA!... Rapidamente arranjou uma pá, um saco de estopa e começou a enchê-lo com nosso entulho. Ajudando-o a recolher as pedras, não pude deixar de notar uma sacolinha de plástico amarrada na parte dianteira da carroça. Era transparente e deixava ver a comida dentro dela: arroz branco, caroços de feijão e pedaços meio amarelados que supus serem batatas. O aspecto era um tanto repugnante; tudo amassado, misturado... A sacola parecia suar mais do que eu. “Deve ser para o cachorro; já passa da hora do almoço... Vai azedar...", disse comigo à tucana.

Entulho na carroça – é hora de pagar e "muito obrigado" (ninguém agradecia mais do que eu pela boa sorte). Meu colega de trabalho deu-me na mão umas moedas, às quais somei mais algumas, e entreguei ao pobre homem, que agradeceu e partiu para o brejo.

Quanto lhe demos? Não sei. Descobrir que não pagaria uma “quentinha” estragaria o meu dia. Prefiro acreditar que lhe garantimos o almoço e que a comida na sacola era para o cachorro. [r]

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comentários:
Ótima narração, mandou muito bem!
Em alguns momentos pode soar um pouco preconceituoso, arrogante até, mas entendo que isso é fruto de um ruído na comunicação e que o objetivo do texto foi fazer uma análise crua das relações intersociais.
 
olá, colegas.
concordo com o q o breno disse. se vc ler sem atenção, vai achar que o texto é preconceituoso, mas na verdade o autor usou muito bem o recurso da ironia. ficou ótimo ao mesmo tempo que tornou o texto melancólico.
abraços e este blogue é muito bom
 
Mais uma das reflexões que a classe média que se pretende crítica tem que fazer. Sentir-se mal em situações do cotidiano, ter nojo de si próprio, raiva da impotência que predomina em certos momentos. O que se pode fazer? Como resolver?
Ótimo texto, merece muita atenção, faz um relato indireto da situação que muitos críticos da universidade vivem. Faz também um relato direto do carma de outros, sem a chamada "sorte".
 
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