19.12.06
a ilha que os muros não separam
por tadeu breda
A Universidade de São Paulo nunca foi nem deve ser uma ilha, um espaço imune às mazelas da sociedade. Quem convive no campus do Butantã, por exemplo, convive com pobreza, desigualdade, violência, congestionamentos e até alagamentos pelo simples fato de estar dentro da cidade de São Paulo. O Jardim São Remo e suas condições precárias de moradia estão ao lado; a criminalidade se reflete em ocorrências que vão desde pequenos furtos até estupros e assassinatos [1]; catadores de latinha trabalhando de madrugada contrastam com estudantes em festa; o fluxo de veículos é intenso e atravanca o trânsito nos horários de pico; chuvas intensas transbordam o córrego Pirajussara e inviabilizam a locomoção na universidade [2].
A Polícia Militar também está presente no campus, talvez, agora, mais do que nunca. As mesmas viaturas da Força Tática que reprimem movimentos sociais no campo e na cidade sufocam as manifestações de estudantes, professores e servidores, dentro e fora da Cidade Universitária. Foi assim no ano passado, na luta por mais verbas para a educação [3] e nos protestos contra as eleições indiretíssimas para reitor [4]. A PM bate em sem-tetos, sem-terras e estudantes quando se exprimem politicamente. Todos são detidos e processados por vandalismo quando exercem sua liberdade de expressão nas ruas ou muros dentro e fora do campus.
A Folha de S. Paulo deu espaço no dia 18 de dezembro para o caso de dois estudantes da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) que estão respondendo criminalmente por escreverem mensagens políticas na parede do prédio da Letras e no asfalto. A pichação anunciava um ato contra o governo Lula marcado para acontecer em Brasília no dia 17 de agosto de 2005 [5]. As tintas diziam apenas, em vermelho, “Brasília 17”.
Estudantes desta mesma FAU sofreram com um decreto da diretoria da unidade, que decidiu proibir festas noturnas no local sem maiores discussões. Se andarmos um pouco mais pelo campus e chegarmos ao prédio da História e Geografia, saberemos que uma rádio livre e experimental foi fechada pela Polícia Federal bem ali [6]. E que, em nome da “segurança” dos estudantes, um grupo de alunos da Escola de Comunicações e Artes (ECA) simplesmente impediu a entrada de catadores de latinha numa festa gratuita, realizada em espaço público e a céu aberto. Impediu até mesmo os estudantes de atitudes banais, que sempre fazem, como subir em árvores ou no teto do autogestionado Canil. Tudo neste ano, dentro dos muros.
Enfim, cada caso desses representa a usurpação do espaço público e da liberdade no campus, seja pela administração do universidade, seja pelos próprios (quem diria!) estudantes. O desrespeito é patente e mostra que o senso crítico e o desejo pela construção de um mundo mais justo definitivamente foram abandonados por parte considerável da comunidade universitária.
É triste e revoltante assistir à universidade se fechando cada vez mais [7] e investindo em repressão para resolver a violência, enquanto poderia iniciar um processo de vigilância comunitária, com uma Guarda Universitária mais presente e treinada para prevenir a criminalidade ao invés de tentar reprimi-la. É triste e revoltante assistir à reitoria restringindo o acesso da comunidade [8] como medida para reduzir a violência enquanto poderia mesmo é abraçar de vez a pobreza que está no entorno através de projetos de extensão – para além, muito além dos cursos pagos. É triste e revoltante assistir a estudantes, colegas, impedirem a entrada de catadores de latinha numa festa, como se o fato de catar latinhas com um saco preto seja rótulo de criminalidade. É triste e revoltante, enfim, assistir à prisão, espancamento e condenação de estudantes que fizeram nada além de contestar.
A USP não é uma ilha ao passo que sofre com os mesmos problemas que afligem a sociedade. Isso não quer dizer, no entanto, que ela deva reproduzir as mesmas formas inúteis de combate a estes problemas. E não, não se trata de tratamento diferenciado ou privilégio. Não se afirma, aqui, que a PM deva permitir uma pichação só porque foi feita por um estudante da USP; ou que o choque não nos deva reprimir nas ruas porque estudamos na maior universidade pública do Brasil; ou ainda que temos o direito de fazer festa porque, afinal, fomos aprovados pela Fuvest.
A universidade é um ambiente de discussão – e, conseqüentemente, de contestação. É hora de repensar conceitos arraigados na sociedade ao invés de simplesmente reproduzi-los. A não ser que tenhamos a convicção de que eles estão conseguindo resolver os problemas. Não me parece. Portanto, vejo que é hora de reagir – e cada vez mais – ao que acreditamos ser uma restrição de nossa liberdade. “Nossa”, não de estudantes da USP, mas “nossa”, de cidadãos e seres humanos.
O cerco se fecha contra os que se opõe à ditadura do pensamento único, que, nos jargões acadêmicos, podemos chamar de burguês, pós-moderno e neoliberal. Enquanto reajusta em 15 por cento a passagem de ônibus na cidade [9], agravando a exclusão social e dificultando o acesso à cidade, a Prefeitura investe 4,5 milhões de reais na reforma da Oscar Freire [10]. A maioria da população se cala e a PM tortura [11] um estudante que participou dos protestos no fim de novembro. E fica tudo por isso mesmo, com o salário-mínimo na casa dos 350 reais e o “subsídio” parlamentar ultrapassando o teto dos 24,5 mil [12].
É triste também ver estudantes comemorando a condenação de colegas e dizendo que três meses de detenção é “pouco” para quem “depredou” o patrimônio público. Acho válido colocar uma questão sobre o ato de depredar. Acredito que apenas escrever mensagens políticas em muros e ruas e seja lá o que for, meios públicos, não se trata de depredação [13]. O lugar fica feio, não dá para mostrar para os pais, mas continua lá, cumprindo sua função de muro, sem nada quebrado, sem nenhum prejuízo. Lógico, muita gente não gosta (e tem direito de não gostar) das mensagens grafitadas ou do resultado final da intervenção. Fica feio. Mas levar descontentamentos estéticos para o Tribunal de Justiça é uma reação completamente descabida, ainda mais na USP conivente com cursos milionários ministrados em ambiente público para encher as burras de grupinhos intelectuais antenados com o mercado [14]. A máxima punição que poderia ser aplicada aos estudantes da FAU pegos em flagrante pela Guarda Universitária seria re-pintar o local em suas cores originais, o que já é horrível por forçar uma espécie de auto-repressão da manifestação política. Processo judicial, nem pensar. E isso a toda manifestação político-artística dentro e, sobretudo, fora da USP.
Posso estar redondamente enganado – e qualquer advogado poderia muito bem rir da minha cara –, mas vejo diferenças absurdas entre “crime” e “desobediência civil”, porque esta última tem motivação política. Confundir as duas coisas é o que a polícia vem tentando fazer ultimamente com a clara intenção de incriminar os manifestantes e impedir sua atuação, em clara discordância com a democracia. A luta pelo Passe-Livre sofre com isso. Figuras do MPL de Floripa respondem judicialmente por formação de quadrilha, apologia ao crime e atentado aos serviços públicos essenciais [15]. São alguns dos crimes cometidos pelo PCC, por exemplo, nos ataques de 2006. E os estudantes catarinenses, o que eles fizeram foi se manifestar continua e coletivamente, por mais de um mês, contra o reajuste das passagens de ônibus em 2004. O movimento venceu, mas esses militantes podem perder – sua primariedade judicial, quiçá sua liberdade.
Enfim, eu concordo plenamente que temos de assumir nossas atitudes e posições políticas. É mesmo o que temos de fazer se acreditamos no que dizemos. Mas acredito ser muito fácil diminuir colegas – que devem estar, no mínimo, assustados com uma condenação completamente injusta – por recorrer a um jornal burguês como a Folha de S. Paulo diante da total falta de solidariedade do corpo estudantil, docente, funcional e da Reitoria, que deveriam sair em sua defesa, mas muitas vezes acabam fazendo o papel de algozes. Por mais que discordemos da tendência política à qual eles pertencem, que critiquemos seu vanguardismo ou seu desprezo pelas instâncias tradicionais da política universitária, não podemos nos esquecer que o companheiro e a companheira da FAU estiveram ao nosso lado nas marchas de 2005 por mais verbas e, neste ano, contra o aumento do ônibus.
A discussão está além do sectarismo político que domina o movimento estudantil da USP. Estão em jogo muitas de nossas liberdades constitucionais e, pior, nosso direito de contestar as leis e apresentar outras visões sobre o mundo e o comportamento da sociedade. Eu cria na universidade pública como o espaço para aplicar novos conceitos, sempre em busca de mais democracia e menos injustiça. Mas vejo, depois de quatro anos, que o conservadorismo está em todos os lugares, até e principalmente no campus. E quem luta contra ele sofre as mesmas restrições, seja da PM, seja da Reitoria. Claro, eu já devia saber. Afinal, a USP não é uma ilha. [r]
Notas
[1] Ver “Violência invade o campus”. Jornal do Campus, primeira quinzena de abril de 2006.
[2] Ver “Chuva provoca 16 pontos de alagamento e coloca a capital em estado de atenção” . Folha de S. Paulo, 11/03/2006.
[3] Ver “Violência paralisa Assembléia”. Jornal do Campus, segunda quinzena de setembro de 2005. Ver também “Estudantes e PMs duelam em avenida”. Folha de S. Paulo, 15/09/2005.
[4] Ver “Co define três possíveis reitores”. Jornal do Campus, primeira quinzena de novembro de 2005.
[5] Ver “Marcha atrai alunos a Brasília”. Jornal do Campus, primeira quinzena de setembro de 2005.
[6] Ver “Polícia Federal fecha Rádio Várzea”. Jornal do Campus, segunda quinzena de agosto de 2006.
[7] Ver “USP vai comprar câmeras e monitorar sua área externa”. Folha de S. Paulo, 04/08/2006.
[8] Ver “Acesso ao campus é controlado”. Jornal do Campus, segunda quinzena de agosto de 2006.
[9] Ver “Ônibus sobe mais que o dobro da inflação”. Folha de S. Paulo, 17/11/2006.
[10] Ver “E a população arcando com o aumento”. Centro de Mídia Independente, 10/12/2006.
[11] Ver “Cresce repressão aos protestos contra aumento de passagens em São Paulo”. Carta Maior, 28/11/2006.
[12] Ver “Congressistas aumentam o próprio salário em 91%”. Folha de S. Paulo, 15/12/2006.
[13] De onde eu tirei a idéia (à primeira vista absurda) de que escrever “Brasília 17” num muro da FFLCH não é depredação? Bom, começando do começo, acredito que “depredação” é uma palavra muito forte e agressiva para designar a atitude de dar umas pinceladas numa parede branca. Depredar carrega o sentido de quebrar, devastar, causar algum prejuízo, inutilizar, dificultar o funcionamento, inviabilizar, enfim. Como todo mundo apela para o Aurélio, lá vou eu: depredar é “destruir, assolar, devastar, roubar, saquear, espoliar”. O significado, portanto, é bastante violento. E pode ser aplicado quando alguém queima uma lixeira pública, arrebenta pontos de ônibus, derruba placas de sinalização, esmigalha vidros de trens e metrô. O prejuízo causado é tamanho que o equipamento tem de ser substituído pelo governo, causando prejuízos ao erário público. Ou seja, o poder municipal, estadual ou federal empenhou ali uma verba que, além de ter sido pulverizada pela, aí sim, depredação, terá de ser novamente destinada para que o que foi destruído possa continuar cumprindo seu papel. Uma lixeira, um vidro, um sinal de trânsito devem ser recolocados, provocando gastos extras. Vejo que pichar um muro não traz as mesmas conseqüências. Um muro pichado ou bem pintado, branco ou com intervenções coloridas, chapiscado ou com pedras, enfim, a cor e a aparência de um muro não o impede de cumprir sua função de... muro: continua servindo a seu propósito de barreira física, impedindo a entrada ou saída de pessoas ou protegendo equipamentos, ambientes ou o que quer que se queira proteger – da chuva, do vento, de roubo. Pichar não é como queimar lixeiras ou quebrar vidros, inutilizando o bem público. É, no máximo, quando feita sem pretensões artísticas, enfeiar, provocar desconforto. Mas seu objetivo é mesmo passar uma mensagem. Daí sua importância política. Podemos pensar, no entanto, que, quando pichamos um muro, estaremos prejudicando a tinta ali empregada para deixá-lo com uma, digamos, boa aparência. Além do mais, ninguém gostaria de ter seu muro pichado. Novamente, portanto, entramos no terreno da estética, e não na funcionalidade, do muro. E é por isso mesmo que acredito que a pena máxima – se há mesmo a necessidade de alguma punição – a ser aplicada a alguém que picha muros, quando pego em flagrante, é a re-pintura do mesmo.
No entanto, quando a intervenção é política, cometeremos um erro ao tratá-la como uma atitude comum, banal, como escrever o próprio nome ou mensagens de amor pelos muros públicos e privados da cidade. Emitir uma opinião política ou tecer alguma crítica social nos espaços urbanos que não têm dono (ou que são de todos) é completamente diferente. Se alguém sente a necessidade de gravar sua mensagem com tinta ou spray é porque não lhe restou outro espaço para expressar sua opinião. Aí entramos no terreno das liberdades constitucionais – que prevêem a expressão política individual – em conflito direto com a falta de democracia no acesso aos meios de comunicação, uma outra e extensa discussão. Dessa forma, acredito que a condenação dos estudantes da FAU é duplamente errônea ao se basear na depredação de patrimônio público. Primeiro porque exagera seu significado, aplicando um conceito que pode ser válido para vidros quebrados ou lixeiras queimadas, mas não para muros pichados. Segundo porque despreza a motivação política da intervenção em face à realidade que vivemos hoje em dia. Esses são apenas opiniões para fomentar a discussão. Posso estar completamente errado, mas é isso que penso sobre o assunto atualmente.
[14] Ver cursos de especialização, extensão, MBAs e similares oferecidos pela Escola Politécnica, Escola de Comunicações e Artes, Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade, entre outras.
[15] Ver “República Especial: Movimento Passe-Livre”. Caros Amigos, edição 110. Ver também “Processos contra militantes serão arquivados em SC”. Centro de Mídia Independente, 21/12/2006.
A Universidade de São Paulo nunca foi nem deve ser uma ilha, um espaço imune às mazelas da sociedade. Quem convive no campus do Butantã, por exemplo, convive com pobreza, desigualdade, violência, congestionamentos e até alagamentos pelo simples fato de estar dentro da cidade de São Paulo. O Jardim São Remo e suas condições precárias de moradia estão ao lado; a criminalidade se reflete em ocorrências que vão desde pequenos furtos até estupros e assassinatos [1]; catadores de latinha trabalhando de madrugada contrastam com estudantes em festa; o fluxo de veículos é intenso e atravanca o trânsito nos horários de pico; chuvas intensas transbordam o córrego Pirajussara e inviabilizam a locomoção na universidade [2].
A Polícia Militar também está presente no campus, talvez, agora, mais do que nunca. As mesmas viaturas da Força Tática que reprimem movimentos sociais no campo e na cidade sufocam as manifestações de estudantes, professores e servidores, dentro e fora da Cidade Universitária. Foi assim no ano passado, na luta por mais verbas para a educação [3] e nos protestos contra as eleições indiretíssimas para reitor [4]. A PM bate em sem-tetos, sem-terras e estudantes quando se exprimem politicamente. Todos são detidos e processados por vandalismo quando exercem sua liberdade de expressão nas ruas ou muros dentro e fora do campus.
A Folha de S. Paulo deu espaço no dia 18 de dezembro para o caso de dois estudantes da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) que estão respondendo criminalmente por escreverem mensagens políticas na parede do prédio da Letras e no asfalto. A pichação anunciava um ato contra o governo Lula marcado para acontecer em Brasília no dia 17 de agosto de 2005 [5]. As tintas diziam apenas, em vermelho, “Brasília 17”.
Estudantes desta mesma FAU sofreram com um decreto da diretoria da unidade, que decidiu proibir festas noturnas no local sem maiores discussões. Se andarmos um pouco mais pelo campus e chegarmos ao prédio da História e Geografia, saberemos que uma rádio livre e experimental foi fechada pela Polícia Federal bem ali [6]. E que, em nome da “segurança” dos estudantes, um grupo de alunos da Escola de Comunicações e Artes (ECA) simplesmente impediu a entrada de catadores de latinha numa festa gratuita, realizada em espaço público e a céu aberto. Impediu até mesmo os estudantes de atitudes banais, que sempre fazem, como subir em árvores ou no teto do autogestionado Canil. Tudo neste ano, dentro dos muros.
Enfim, cada caso desses representa a usurpação do espaço público e da liberdade no campus, seja pela administração do universidade, seja pelos próprios (quem diria!) estudantes. O desrespeito é patente e mostra que o senso crítico e o desejo pela construção de um mundo mais justo definitivamente foram abandonados por parte considerável da comunidade universitária.
É triste e revoltante assistir à universidade se fechando cada vez mais [7] e investindo em repressão para resolver a violência, enquanto poderia iniciar um processo de vigilância comunitária, com uma Guarda Universitária mais presente e treinada para prevenir a criminalidade ao invés de tentar reprimi-la. É triste e revoltante assistir à reitoria restringindo o acesso da comunidade [8] como medida para reduzir a violência enquanto poderia mesmo é abraçar de vez a pobreza que está no entorno através de projetos de extensão – para além, muito além dos cursos pagos. É triste e revoltante assistir a estudantes, colegas, impedirem a entrada de catadores de latinha numa festa, como se o fato de catar latinhas com um saco preto seja rótulo de criminalidade. É triste e revoltante, enfim, assistir à prisão, espancamento e condenação de estudantes que fizeram nada além de contestar.
A USP não é uma ilha ao passo que sofre com os mesmos problemas que afligem a sociedade. Isso não quer dizer, no entanto, que ela deva reproduzir as mesmas formas inúteis de combate a estes problemas. E não, não se trata de tratamento diferenciado ou privilégio. Não se afirma, aqui, que a PM deva permitir uma pichação só porque foi feita por um estudante da USP; ou que o choque não nos deva reprimir nas ruas porque estudamos na maior universidade pública do Brasil; ou ainda que temos o direito de fazer festa porque, afinal, fomos aprovados pela Fuvest.
A universidade é um ambiente de discussão – e, conseqüentemente, de contestação. É hora de repensar conceitos arraigados na sociedade ao invés de simplesmente reproduzi-los. A não ser que tenhamos a convicção de que eles estão conseguindo resolver os problemas. Não me parece. Portanto, vejo que é hora de reagir – e cada vez mais – ao que acreditamos ser uma restrição de nossa liberdade. “Nossa”, não de estudantes da USP, mas “nossa”, de cidadãos e seres humanos.
O cerco se fecha contra os que se opõe à ditadura do pensamento único, que, nos jargões acadêmicos, podemos chamar de burguês, pós-moderno e neoliberal. Enquanto reajusta em 15 por cento a passagem de ônibus na cidade [9], agravando a exclusão social e dificultando o acesso à cidade, a Prefeitura investe 4,5 milhões de reais na reforma da Oscar Freire [10]. A maioria da população se cala e a PM tortura [11] um estudante que participou dos protestos no fim de novembro. E fica tudo por isso mesmo, com o salário-mínimo na casa dos 350 reais e o “subsídio” parlamentar ultrapassando o teto dos 24,5 mil [12].
É triste também ver estudantes comemorando a condenação de colegas e dizendo que três meses de detenção é “pouco” para quem “depredou” o patrimônio público. Acho válido colocar uma questão sobre o ato de depredar. Acredito que apenas escrever mensagens políticas em muros e ruas e seja lá o que for, meios públicos, não se trata de depredação [13]. O lugar fica feio, não dá para mostrar para os pais, mas continua lá, cumprindo sua função de muro, sem nada quebrado, sem nenhum prejuízo. Lógico, muita gente não gosta (e tem direito de não gostar) das mensagens grafitadas ou do resultado final da intervenção. Fica feio. Mas levar descontentamentos estéticos para o Tribunal de Justiça é uma reação completamente descabida, ainda mais na USP conivente com cursos milionários ministrados em ambiente público para encher as burras de grupinhos intelectuais antenados com o mercado [14]. A máxima punição que poderia ser aplicada aos estudantes da FAU pegos em flagrante pela Guarda Universitária seria re-pintar o local em suas cores originais, o que já é horrível por forçar uma espécie de auto-repressão da manifestação política. Processo judicial, nem pensar. E isso a toda manifestação político-artística dentro e, sobretudo, fora da USP.
Posso estar redondamente enganado – e qualquer advogado poderia muito bem rir da minha cara –, mas vejo diferenças absurdas entre “crime” e “desobediência civil”, porque esta última tem motivação política. Confundir as duas coisas é o que a polícia vem tentando fazer ultimamente com a clara intenção de incriminar os manifestantes e impedir sua atuação, em clara discordância com a democracia. A luta pelo Passe-Livre sofre com isso. Figuras do MPL de Floripa respondem judicialmente por formação de quadrilha, apologia ao crime e atentado aos serviços públicos essenciais [15]. São alguns dos crimes cometidos pelo PCC, por exemplo, nos ataques de 2006. E os estudantes catarinenses, o que eles fizeram foi se manifestar continua e coletivamente, por mais de um mês, contra o reajuste das passagens de ônibus em 2004. O movimento venceu, mas esses militantes podem perder – sua primariedade judicial, quiçá sua liberdade.
Enfim, eu concordo plenamente que temos de assumir nossas atitudes e posições políticas. É mesmo o que temos de fazer se acreditamos no que dizemos. Mas acredito ser muito fácil diminuir colegas – que devem estar, no mínimo, assustados com uma condenação completamente injusta – por recorrer a um jornal burguês como a Folha de S. Paulo diante da total falta de solidariedade do corpo estudantil, docente, funcional e da Reitoria, que deveriam sair em sua defesa, mas muitas vezes acabam fazendo o papel de algozes. Por mais que discordemos da tendência política à qual eles pertencem, que critiquemos seu vanguardismo ou seu desprezo pelas instâncias tradicionais da política universitária, não podemos nos esquecer que o companheiro e a companheira da FAU estiveram ao nosso lado nas marchas de 2005 por mais verbas e, neste ano, contra o aumento do ônibus.
A discussão está além do sectarismo político que domina o movimento estudantil da USP. Estão em jogo muitas de nossas liberdades constitucionais e, pior, nosso direito de contestar as leis e apresentar outras visões sobre o mundo e o comportamento da sociedade. Eu cria na universidade pública como o espaço para aplicar novos conceitos, sempre em busca de mais democracia e menos injustiça. Mas vejo, depois de quatro anos, que o conservadorismo está em todos os lugares, até e principalmente no campus. E quem luta contra ele sofre as mesmas restrições, seja da PM, seja da Reitoria. Claro, eu já devia saber. Afinal, a USP não é uma ilha. [r]
Notas
[1] Ver “Violência invade o campus”. Jornal do Campus, primeira quinzena de abril de 2006.
[2] Ver “Chuva provoca 16 pontos de alagamento e coloca a capital em estado de atenção” . Folha de S. Paulo, 11/03/2006.
[3] Ver “Violência paralisa Assembléia”. Jornal do Campus, segunda quinzena de setembro de 2005. Ver também “Estudantes e PMs duelam em avenida”. Folha de S. Paulo, 15/09/2005.
[4] Ver “Co define três possíveis reitores”. Jornal do Campus, primeira quinzena de novembro de 2005.
[5] Ver “Marcha atrai alunos a Brasília”. Jornal do Campus, primeira quinzena de setembro de 2005.
[6] Ver “Polícia Federal fecha Rádio Várzea”. Jornal do Campus, segunda quinzena de agosto de 2006.
[7] Ver “USP vai comprar câmeras e monitorar sua área externa”. Folha de S. Paulo, 04/08/2006.
[8] Ver “Acesso ao campus é controlado”. Jornal do Campus, segunda quinzena de agosto de 2006.
[9] Ver “Ônibus sobe mais que o dobro da inflação”. Folha de S. Paulo, 17/11/2006.
[10] Ver “E a população arcando com o aumento”. Centro de Mídia Independente, 10/12/2006.
[11] Ver “Cresce repressão aos protestos contra aumento de passagens em São Paulo”. Carta Maior, 28/11/2006.
[12] Ver “Congressistas aumentam o próprio salário em 91%”. Folha de S. Paulo, 15/12/2006.
[13] De onde eu tirei a idéia (à primeira vista absurda) de que escrever “Brasília 17” num muro da FFLCH não é depredação? Bom, começando do começo, acredito que “depredação” é uma palavra muito forte e agressiva para designar a atitude de dar umas pinceladas numa parede branca. Depredar carrega o sentido de quebrar, devastar, causar algum prejuízo, inutilizar, dificultar o funcionamento, inviabilizar, enfim. Como todo mundo apela para o Aurélio, lá vou eu: depredar é “destruir, assolar, devastar, roubar, saquear, espoliar”. O significado, portanto, é bastante violento. E pode ser aplicado quando alguém queima uma lixeira pública, arrebenta pontos de ônibus, derruba placas de sinalização, esmigalha vidros de trens e metrô. O prejuízo causado é tamanho que o equipamento tem de ser substituído pelo governo, causando prejuízos ao erário público. Ou seja, o poder municipal, estadual ou federal empenhou ali uma verba que, além de ter sido pulverizada pela, aí sim, depredação, terá de ser novamente destinada para que o que foi destruído possa continuar cumprindo seu papel. Uma lixeira, um vidro, um sinal de trânsito devem ser recolocados, provocando gastos extras. Vejo que pichar um muro não traz as mesmas conseqüências. Um muro pichado ou bem pintado, branco ou com intervenções coloridas, chapiscado ou com pedras, enfim, a cor e a aparência de um muro não o impede de cumprir sua função de... muro: continua servindo a seu propósito de barreira física, impedindo a entrada ou saída de pessoas ou protegendo equipamentos, ambientes ou o que quer que se queira proteger – da chuva, do vento, de roubo. Pichar não é como queimar lixeiras ou quebrar vidros, inutilizando o bem público. É, no máximo, quando feita sem pretensões artísticas, enfeiar, provocar desconforto. Mas seu objetivo é mesmo passar uma mensagem. Daí sua importância política. Podemos pensar, no entanto, que, quando pichamos um muro, estaremos prejudicando a tinta ali empregada para deixá-lo com uma, digamos, boa aparência. Além do mais, ninguém gostaria de ter seu muro pichado. Novamente, portanto, entramos no terreno da estética, e não na funcionalidade, do muro. E é por isso mesmo que acredito que a pena máxima – se há mesmo a necessidade de alguma punição – a ser aplicada a alguém que picha muros, quando pego em flagrante, é a re-pintura do mesmo.
No entanto, quando a intervenção é política, cometeremos um erro ao tratá-la como uma atitude comum, banal, como escrever o próprio nome ou mensagens de amor pelos muros públicos e privados da cidade. Emitir uma opinião política ou tecer alguma crítica social nos espaços urbanos que não têm dono (ou que são de todos) é completamente diferente. Se alguém sente a necessidade de gravar sua mensagem com tinta ou spray é porque não lhe restou outro espaço para expressar sua opinião. Aí entramos no terreno das liberdades constitucionais – que prevêem a expressão política individual – em conflito direto com a falta de democracia no acesso aos meios de comunicação, uma outra e extensa discussão. Dessa forma, acredito que a condenação dos estudantes da FAU é duplamente errônea ao se basear na depredação de patrimônio público. Primeiro porque exagera seu significado, aplicando um conceito que pode ser válido para vidros quebrados ou lixeiras queimadas, mas não para muros pichados. Segundo porque despreza a motivação política da intervenção em face à realidade que vivemos hoje em dia. Esses são apenas opiniões para fomentar a discussão. Posso estar completamente errado, mas é isso que penso sobre o assunto atualmente.
[14] Ver cursos de especialização, extensão, MBAs e similares oferecidos pela Escola Politécnica, Escola de Comunicações e Artes, Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade, entre outras.
[15] Ver “República Especial: Movimento Passe-Livre”. Caros Amigos, edição 110. Ver também “Processos contra militantes serão arquivados em SC”. Centro de Mídia Independente, 21/12/2006.
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comentários:
< início
Olá, Tadeu, td bem? Sou editora do site Universia e estou fazendo uma reportagem sobre trote. Vi um post seu do começo do ano sobre o assunto. Vc toparia me dar uma entrevista sobre o que pensa do assunto? Caso positivo, por favor, envie um email para sangerami@universia.com.br. Desde já agradeço.
Silvia
Silvia
eu tinha parado de ler, mas agora vi e fiquei feliz que não acabou o blog.
Já tinha lido antes o texto. gostei. embora ache que o assunto sequer mereceria chegar à imprensa. Mais uma prova do tratamento diferenciado para os que estão aqui dentro da USP.
abraço
léo
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Já tinha lido antes o texto. gostei. embora ache que o assunto sequer mereceria chegar à imprensa. Mais uma prova do tratamento diferenciado para os que estão aqui dentro da USP.
abraço
léo
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