29.6.08

 

sinal fechado

por marcos angelim

Acordou. Penetrando pelas frestas da parede de tijolo baiano, o sol veio desafiá-lo, carregá-lo pra vida – à força. Olhou pro lado: o fino colchão do irmão ainda estava no chão, mas frio. É que o baixinho sai cedo com a caixa de engraxate. Não vou dizer que pensou – o pensamento não é o seu forte; a mãe sempre diz que é burro demais, que só faz cagada, que é um traste. Prefiro dizer que sentiu aquela mistura de medo, raiva, descrença, imersa no torpor necessário para o enfrentamento. Levantou e comeu pão de ontem com margarina; não tinha leite. Inverteu a ordem que você provavelmente segue: lavou o rosto no tanque, tirou a remela do canto dos olhos, não escovou os dentes; pôs o boné, pegou o rodinho, o frasco com água e detergente e saiu.

Que sorte morar ali! – Bem do lado do viaduto, a poucos passos da avenida, apesar de espremido entre a linha do trem e o supermercado. A comunidade (nesse país o eufemismo tem quase adesão nacional) parece mais uma tripa. Pode ser vista de cima do viaduto, mas só pelos que ainda têm olhos. Periferia de São Paulo, confins da zl. Passa muito carro, gente que até tem grana, mas que – talvez por isso – não enxerga. Não interessa se é nos Jardins ou no Itaim (Paulista), no vectra, no eco sport ou no gol – fecha-se o vidro, ignora-se, nega-se. É isso o que mais o fere e avilta. Suporta, contudo, sem deixar de ser simpático, cordial e compreensivo com as negativas, as desculpas e até com os xingamentos...

- Bom dia, senhora! Vô dá uma limpada legal aí. Qualquer moedinha ajuda: dez centavos...

E é de trocados que vive (o bolsa-família só não dá). Tiraria mais se a concorrência não fosse tão grande. É muito carro, mas muita gente de rodinho na mão, sem falar dos ambulantes. O motorista fica puto. Muitas vezes, no fim do dia, era melhor nem ter levantado. “Tem dia de não tirar nem 5 conto!”. O problema é esse: muito vendedor e limpador no sinal.

Isso é também o que a aborrece diariamente. “Saio cedo pra caramba, pego mó trânsito já aqui no Itaim, e ainda tem esses caras pra encher o saco!” – protesto matinal recorrente da publicitária, que demora horas até o escritório na Alameda Santos. Várias vezes lhe quebraram o pára-brisa. Mas em Sampa não tem jeito, ninguém escapa, exceto gente como ele, que não tem carro e quebra – sem querer, claro, pois tem de limpar rápido, antes do sinal abrir – o pára-brisa do carro dos outros.

É sempre igual. Os dois levantam pra se encontrar. Só que ele pra limpar, pedir, dizer bom dia; ela, pra desprezar, bufar, negar. Insuportável. Mas que fazer? Ela se recusa a ir de ônibus e metrô pro trabalho. “Gasto mais, podia ser até mais rápido... Mas é muito cheio, ia chegar toda amassada... Mil vezes de carro, é mais confortável”, justifica. Ele não vê alternativa. É que o ódio cega e começa a transbordar: “Filha da puta! Nem olha na nossa cara! Vaca do caralho!”

Não, não vai ser mais assim porque hoje algo mudou. Ele despertou com o sol na cara, mas não comeu nada nem lavou o rosto; pôs outra bombeta e, em vez do rodinho e do detergente, pegou a PT, colocou na cintura embaixo da camiseta e foi pro sinal. Ela já está na rua. Se estressa só de imaginar a terça-feira: “Trânsito parado, ambulantes e aqueles moleques!...”

Ele está lá agora, à espera, nervoso, enquanto ela se aproxima do sinal – fechando pros dois. [r]

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comentários:
"no sinal fechado, ele vende chiclete, se chama 'pivete'..."

o texto está bom! o argumento está bom! vivemos isso todos os dias, kda um a sua maneira, kda um com o seu "sinal fechado"... omde vamos parar?!!

me lembrou o estilo/a temática do rubem fonseca, e eu confesso q chorei lendo.
 
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