24.4.06

 

a febem, suas mortes e desrespeitos

entrevista a leonardo amaral, tadeu breda e joão peres
edição e introdução por joão peres

O reverso começa agora uma série de reportagens sobre a Febem (Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor) de São Paulo. A primeira delas, que vem publicada logo abaixo, é o relato de uma mãe que perdeu seu filho na instituição (foram 27 adolescentes mortos dentro das unidades nos últimos três anos).

Depois, as histórias de um funcionário e de pessoas que trabalham na defesa dos menores e suas famílias. São apenas alguns exemplos que ilustram a triste história da fundação criada em 1973 e que tem em seus arquivos incontáveis mortes e casos tristes de desrespeito aos diretos humanos e a tratados internacionais. Uma instituição que aprofunda os problemas de internos que deveriam estar lá para educação. Atualmente, cerca de 35% dos ex-internos cometem delitos na vida adulta.

Após as primeiras transferências de menores para presídios, durante o governo Alckmin, grupos como o PCC (Primeiro Comando da Capital) conseguiram entrar na Febem, aprofundando as mazelas de uma instituição já tão problemática. Hoje, vários funcionários têm que pagar para ingressarem nas unidades em que trabalham.

A Febem é uma das mais problemáticas instituições brasileiras e a única do Estado de São Paulo que teve seu caso enviado à Corte Interamericana de Direitos Humanos, ligada à Organização dos Estados Americanos (OEA). São as mais graves violações ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), criado na década de 90 e jamais respeitado na fundação.

***

Eduardo Oliveira de Souza tinha 16 anos quando foi internado, em 25 de dezembro de 2004. Durante a madrugada do dia de Natal, em Santo André, região metropolitana de São Paulo, ele e dois colegas cometeram alguns delitos. Primeiro, roubaram um carro e, como ninguém sabia dirigir, acabaram batendo. Depois, abordaram um casal e furtaram outro veículo. Ao avistarem uma viatura da polícia, se assustaram, começaram a correr e foram detidos depois de alguns tiros dos policiais.

Após seis dias no 1o Distrito Policial de Santo André, os menores foram transferidos para a Unidade de Internação Provisória (UIP) número Nove do Complexo Tatuapé da Febem, onde esperaram por julgamento até o dia 27 de janeiro. A juíza recomendou que Eduardo ficasse detido de seis meses a três anos.

“O Eduardo ficou lá na UIP-9 até o dia seis de fevereiro. Foi no dia seis de fevereiro que surgiu uma vaga e transferiram ele para a UIP-4”, conta Edi Oliveira Silva, mãe de Eduardo.

“Eu sei que lá ele ficou até o dia 12 de março, num sábado. Eu visitei ele pela manhã, e conversamos muito, ele disse que queria logo sair de lá. E eu até já tinha ido na quinta-feira, que foi dia 10, tinha tido uma rebelião lá no Tatuapé, invadiram a quatro, e aí eu fui lá no fórum e expliquei que meu filho estava lá, e não estava tendo uma escola, não tinha um curso, não tinha nada. Os meninos abandonados lá, tem dia que nem funcionário tinha.”

A advogada responsável pelo caso recomendou a Dona Edi que pedisse à técnica de Eduardo um relatório pedindo a desinternação.

“Visitei o Eduardo no sábado (12/03/05), conversei com ele, expliquei que ia pedir o relatório na segunda pra técnica. Liguei pra técnica dele e expliquei que precisava que ela fizesse um relatório, já que lá ele não tava estudando, não tava fazendo nada, pelo menos aqui ele trabalhava e ficava em casa, né?”

“Aí, eu falei com ela n segunda, pedi o relatório, ela falou que tudo bem, que tava uma bagunça, né, porque tinha tido uma rebelião na quinta, mas ela ia fazer um relatório. E eu perguntei:

- ‘E o Eduardo?’
E ela falou:
- ‘Ah, tá tudo bem, o Eduardo está aqui, ele é um menino calmo’.”

Não estava. No dia 16, quatro dias depois da rebelião, o irmão de Dona Edi é avisado pela Febem de que Eduardo havia fugido no dia doze.

“Não tinha dado um telefonema, não tinha dado um sinal de vida, nada. Aí, eu entrei em desespero. No dia 17, eu fui lá pro Tatuapé e conversei com a técnica dele e falei:
- ‘Cláudia, mas falei com você na segunda e você disse que meu filho tava aqui e que tava bem. Agora, você vem falar que meu filho fugiu no sábado à noite?’
- ‘É, mãe, porque aqui tá uma bagunça, um menino fala que é um, outro fala que é outro, então...’ ”

Dona Edi começou então uma longa busca.

“Eu não aceitei essa hipótese de que meu filho fugiu. Uma porque o Eduardo não era bandido. Ele fez coisa errada, mas tinha a casa dele, ele não precisava disso. Vida de pobre, mas ele tinha o trabalho dele, comprava as coisas dele, tinha o que ele queria, né? Só que foi pela cabeça dos outros. Então, eu falei, ‘não, não vou aceitar isso’. Meu filho tem que aparecer, ninguém some assim do nada. Mesmo se tivesse chegado até um orelhão, se tivesse a chance de chegar a um orelhão, tinha ligado”.

E sem ajuda da Febem...

“Que era pra eu procurar uma delegacia, procurar o IML, né, a família que procurasse. Então, como meu filho trabalhava e só tinha eu, o pai dele não mora mais aqui, comecei a procurar”.

“Meu fim de semana era para ir em pronto-socorro. IML das Clínicas acho que eu passei umas quatro vezes, o povo já até me conhecia. Arthur Alvim, Itaquera, Zona Sul, Santo André, São Bernardo, tudo que você pensar. Eu tinha esperança, porque tantos IMLs que eu ia, tantos eu voltava a segunda vez, e eles não tinham encontrado nada. Talvez meu filho estivesse vivo, né?”

No dia 19 de julho, quatro meses depois, Dona Edi resolveu ir até o IML de Franco da Rocha, pois tinham dito que muitos casos iam pra lá.

“Eu falei: ‘bom, se eu já procurei na região de São Paulo toda, quase todos IMLs dessa região eu conheço e nada’. Aí, eu peguei e fui pra Franco da Rocha”. Dei as características dele, e ele tinha feito uma tatuagem dum coringa aqui na perna. Um palhacinho”.

O registro de Eduardo foi encontrado no arquivo das pessoas enterradas como indigentes. O corpo foi encontrado na manhã do dia 13 de março, às onze e trinta da manhã, por um cobrador de ônibus na Estrada da Servidão, em Mairiporã.

“Ele foi muito espancado, tava muito machucado, tinha corte aqui no pescoço, tinha tiro aqui no nariz, tiro na cabeça, mais tiro aqui e tiro aqui (nuca e peito). Aí, o delegado lá de Mairiporã falou que a informação é de que havia sido espancado e que ele tinha sido morto, executado ali”.

“Pelo que me informaram lá, o tipo de crime, nas condições que ele foi assassinado, me falaram que foi polícia”.

Segundo os relatos feitos a Dona Edi, a fuga foi forçada por alguns funcionários.
“Dizem que o Eduardo saiu também correndo e, desde que eles começaram a correr para fora da unidade da Febem, já tinha tiro, e eram tiros de verdade. Eles correram pra uma favelinha que tem ali de frente do Tatuapé”.

Dona Edi não acredita na versão de que Eduardo fugiu.

“O Eduardo sabia que logo ia sair da Febem, porque eu já estava indo atrás. Ele falou:
- Mãe, pra que eu vou fugir? Se eu fugir e me pegarem, minha pena vai dobrar. E eu tenho que andar fugido, né, porque toda hora tô na rua e a polícia pega. Não, eu vou esperar. A senhora vai atrás, vê o que a senhora pode fazer pra mim. Se eu sair, tudo bem. Se eu não sair, fico aí oito meses, talvez seis meses ou um ano”.

“Ou ele fugiu obrigado, ou ele não fugiu, foi espancado lá dentro e a hora que viram que o caso dele... porque a morte dele foi espancamento, perfuração de alguns órgãos, porque bateram nele, e traumatismo craniano”.

Dona Edi entrou na Justiça para tentar apurar o que aconteceu na noite de doze de março de 2005, mas, até agora, ninguém foi punido.

“A pessoa comete uma infração. Você tem lá a punição pra ir pagar, né, no caso ele tava lá interno pra cumprir, pra pagar o que tinha feito de errado. Agora, não se tem segurança nenhuma, não se zela pela integridade física do menor e, pensa, meu filho morreu e não é problema da Febem, não é problema de ninguém. E de quem é o problema? Nessa, meu filho não vai voltar mais”.

Quando completou 16 anos e concluiu o primeiro grau, Eduardo quis arrumar um emprego para ganhar “o próprio dinheiro”. Trabalhava em uma empresa especializada em entrega de panfletos.

Na Febem, fez pequenas esculturas de origami em papel sulfite (o material era levado pelas mães). [r]

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comentários:
Publiquei o texto do Vina no Centro de Mídia Independente.

Façam isso também, putada. Dá um certo retorno...
 
Muito bom texto. Parabéns pela iniciativa de fazer um blog realmente sério. Sobre o assunto, sinto que a febem é só algo feito na tentativa de esconder coisas bem mais graves, como a miséria geral da população. Enquanto jogamos a culpa em um único orgão, incapaz, podemos não ver esses outros problemas
 
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