4.5.06

 

mas pode isso?

por hugo fanton, em frankfurt

Outro dia, uma professora perguntou-me sobre a vida no interior do Brasil. Após minutos de conversa, entrei no tema da concentração fundiária. Ao dizer que algumas poucas pessoas dispõem de áreas enormes no campo e mesmo assim não produzem, fui questionado:

– Mas pode isso?

Poucas vezes na vida fiquei tão embaraçado com uma pergunta tão simples. Com meu alemão ainda meio capenga, procurei as melhores palavras para esclarecer. E não fui feliz.

Citei impunidade, o valor imobiliário dado à terra, questões históricas e tradicionais, dentre outras explicações, e mesmo assim a alemã não entendia o fato. Falei novamente, como uma criança, já meio sem convicção, perguntando-me se dizia bobagens:

– Existem pessoas com uma fazenda bem grande, mas que não plantam. Por isso tem um grupo que quer a divisão dessas terras, já que muitos não têm o que comer nem onde trabalhar.

– Mas pode isso? – novamente a pergunta.

A vergonha foi grande. Outros alunos presentes na sala olhavam-me esperando a resposta. Não sabia direito o que falar. Todo o sentimento nacionalista que nos toma ao sair do Brasil transformou-se num forte e triste peso. Pela primeira vez na vida, tive uma realidade tão dura jogada na minha cara.

Foi notório que a professora não entendia um fato desse acontecer sem que houvesse forte mobilização social. Mobilização social não apenas de um grupo, mas de toda a nação que, pasma e inconformada, não aceitaria o fato. Afinal, "isso" não pode. Mas no Brasil pode...

Na cabeça dela, essa realidade não seria aceita pelas pessoas. Para a alemã, fosse assim, já teria ouvido falar de algo como que uma revolução social no Brasil.

Não consegui mais prestar atenção na aula.

“Mas pode isso?”

A frase martelava na minha cabeça. Era tão simples, tão lógico e tão triste. Dei-me conta de como aceitamos injustiças e vivemos nossa vida sem dar atenção aos absurdos que nos rondam.

Sempre defendi a reforma agrária, distribuição de renda, universalização de uma educação de qualidade e tantos outros temas necessários para acabar com a enorme desigualdade social brasileira.

Contudo, pela primeira vez na minha vida, percebi de fato o quão injusta e absurda é a realidade do país. Uma realidade, sempre presente em minha mente, foi como que exposta em sua vertente mais dura e chocante. A simplicidade da pergunta desnudou uma nação cega, que não é capaz nem mesmo de responder:

“Mas pode isso?”
[r]

Marcadores:



comentários:
cara, de arepiar. só faltou você colocar que é aluno universitário aí em Frankfurt no começo do texto (do lado do seu nome).
 
Postar um comentário



< início

This page is powered by Blogger