14.2.07

 

Uma nova postura para um novo tempo

por marcos angelim

Sob a repercussão do relatório do IPCC acerca das mudanças climáticas da Terra e suas devastadoras conseqüências, ganha ímpeto a reflexão sobre como devemos agir para evitar o cataclismo anunciado. Governantes chamam a atenção para algumas das medidas a serem tomadas a nível governamental e cada um de nós é levado a se questionar tanto sobre sua participação no processo de degradação quanto na tentativa de diminuir seus trágicos efeitos.

É inquestionável o papel do consumo no processo de destruição do planeta: quanto maior o consumo, maior a quantidade de recursos naturais a serem retirados e transformados, gerando, assim, devastação e todo tipo de poluição. Já é lugar-comum afirmar que, se todos os habitantes da Terra tivessem o mesmo padrão de consumo dos estadunidenses, europeus e japoneses, o planeta não suportaria. Mas esse limite, imposto pelo fato de que os recursos naturais são esgotáveis e que a Terra não é imune à ação antrópica, parece não ter sido ainda compreendido nem pelas autoridades formuladoras das políticas de desenvolvimento econômico, que insistem em modelos fadados a agravar o quadro de degradação da vida, nem pelos cidadãos, que relutam a mudar seus hábitos de consumo. No entanto, estudos e fórmulas de calcular o impacto que exercemos individualmente sobre o meio ambiente encontram-se com facilidade.

A produção de carne e de outros produtos de origem animal, por exemplo, até bem pouco tempo passou despercebida como uma das principais causas de devastação de florestas, poluição de recursos hídricos e de emissão dos gases estufa. Segundo relatório da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação, a FAO (Food and Agriculture Organization), a produção de 1kg de carne bovina consome, em média, 15 mil litros d’água, enquanto a produção da mesma quantidade de cereais requer 3 mil litros. Outro relatório do mesmo organismo afirma que a pecuária produz gases mais nocivos para a atmosfera do que o sistema de transportes, apontado, nos meios de comunicação, como o grande problema.

Nosso país, em 2007, tornou-se o maior exportador de carnes do mundo, deixando para trás a Austrália, antiga ocupante do posto. Na Amazônia, a maior parte das queimadas visa a preparar a terra para a pastagem do gado e para o plantio de grãos, como a soja, que serão destinados ao fabrico de ração de animais de corte no Brasil e no exterior. Apesar disso, poucos estão dispostos a sequer diminuir a quantidade de produtos de origem animal que consomem diariamente. Mas os vegetarianos, que nunca foram levados a sério e sempre foram vistos como hipongas e espiritualistas, disfarçam agora o prazer de saber que uma das principais razões de ser vegetariano começa a ser amplamente reconhecida.

O vegetarianismo, contudo, funda na ética alicerce muito mais sólido e menos antropocêntrico do que a mera defesa do meio ambiente. É que, do ponto de vista ético, ele se justifica mais pelo dever moral de tratar com igualdade os interesses do outro – no caso, a alteridade constituída por outra espécie animal – do que pela necessidade de livrar as próximas gerações e a nós próprios dos problemas que a exploração desse outro acarreta.

A expansão da esfera de consideração moral vem ocorrendo há muito tempo. Primeiro reconheceu-se a humanidade dos escravos; depois fez-se a abolição do escravismo e ele é hoje condenado onde quer que resista; em seguida, gradualmente, os ex-escravos conquistaram o status de cidadãos iguais a todos os outros, adquirindo direitos políticos, civis e econômicos. Assim foi também com as mulheres, que, apesar do sexismo ainda existente, alcançaram grandes vitórias no campo dos direitos. Mas a última etapa do alargamento da esfera moral, isto é, a inclusão dos não-humanos, enfrenta oposição cerrada da imensa maioria dos incluídos, sejam negros, homossexuais, mulheres ou ambientalistas.

Os argumentos em defesa da exploração das demais espécies em benefício dos humanos variam. Nas culturas judaico-cristãs, costuma-se alegar que Deus nos deixou os animais para servirem de alimento; outros afirmam que tudo não passa de simples obediência à lei da natureza, da cadeia alimentar, e que precisamos de carne para sobreviver, o que se provou não ser verdadeiro há muito tempo; os mais cultos, julgando ter argumentos mais refinados, traçam a fronteira na racionalidade, afirmando que podemos usufruir dos não-humanos porque não possuem razão – um traço que supostamente nos distinguiria de todo o resto da criação.

Todos esses argumentos, porém, escondem uma visão antropocêntrica da vida e um tipo de preconceito ainda quase desconhecido: o especismo, que, em poucas palavras, consiste na convicção, ou ideologia, segundo a qual os interesses dos seres humanos vêm em primeiro lugar, têm mais importância do que quaisquer interesses dos não-humanos.

Assim, é mais importante agradar o nosso paladar num churrasco de fim-de-semana do que evitar o sofrimento daqueles que foram mortos para que comêssemos a sua carne regada à cerveja. O surpreendente é que não é a posse da razão ou da linguagem que, em última instância, nos distingue dos não-humanos. Se assim fosse, portadores de deficiência mental profunda estariam fora do grupo humano.

Como escreveu Locke, é o formato, o feitio do corpo que nos diferencia. Em suas palavras: “que quem quer que veja uma criatura com a sua própria forma e feitio, embora esta nunca tenha tido durante toda a sua vida mais razão do que um gato ou um papagaio, ainda lhe chamaria um Homem; ou quem quer que ouça um gato ou um papagaio falar, raciocinar e filosofar chamar-lhes-ia ou pensaria não serem mais do que um gato ou um papagaio e diria que aquele era um Homem estúpido e irracional e este um papagaio muito inteligente e racional”.

Locke conseguiu evidenciar a verdadeira razão do tratamento desigual que conferimos aos não-humanos. Em outras palavras, ele desvendou o critério arbitrário por trás do pensamento e das práticas especistas.

Filósofos como Jeremy Benthan e Peter Singer afirmam que é a sensiência (capacidade de sentir dor e prazer) o traço que deve ser levado em consideração na avaliação das nossas relações com os demais animais. Singer afirma que, se um ser sofre, não há justificativa moral para ignorar esse sofrimento.

Outro expoente do movimento de libertação animal, o filósofo estadunidense Tom Regan, afirma que os animais são sujeitos de uma vida e que possuem um valor em si e para si mesmos, o que tornaria injustificável transformá-los em meios para um fim humano.

O debate em torno dessa questão é atual e os pensadores ligados ao movimento de defesa dos não-humanos têm travado debates interessantes com pensadores como John Raws e tantos outros opositores da inclusão dos animais na esfera de consideração moral.

Essa discussão, porém, em virtude dos interesses econômicos envolvidos e da própria dificuldade que temos de encarar uma situação que nos recusamos a enxergar como problema relevante, uma vez que é favorável aos nossos interesses, ocorre à margem da grande mídia e é desconhecida da grande maioria dos cidadãos.

Talvez, com o ganho de espaço que as questões relativas ao meio ambiente terão daqui em diante nas diversas editorias dos jornais, nos programas de TV e até mesmo nas conversas entre amigos, o debate em torno do especismo e do antropocentrismo com que encaramos a vida se torne mais freqüente e resulte em alterações do nosso comportamento em relação ao meio ambiente e às demais espécies, que devem ser vistas como merecedoras da vida e do planeta, e não como hamburgueres e nuggets à nossa espera no fast-food da esquina.[r]

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comentários:
Ótimo texto! Argumentos maravilhosamente bem elaborados.

Que sirva para abrir os olhos daqueles que se seguiam por pré-conceitos especistas! Ser vegetariano é crucial para a vida do planeta, tanto quanto para a vida dos animais.
 
Parabéns Marcos!!
Gosto dos teus argumentos, mesmo não concordando inteiramente em alguns pontos... mas "respeito" muito o teu texto. Muito bem escrito!

Bela
 
poderia valer-me da argumentação de walt withman pra escrever algo sobre a argumentação REALMENTE mto boa do subcomandante marcos, que é a seguinte: "...Não torturo meu espírito para que se justifique ou seja compreendido / Vejo que as leis elementares nunca se desculpam ...Existo como sou, isso me basta / Se ninguém está ciente, fico contente / E se cada um e todos estão cientes, fico contente..."; porém, o submarcos poderia usá-la de igual maneira pra triplicar sobre minha réplica, pois ele é partícipe do movimento pela vida, assim como eu sou partícipe do movimento pela morte, de modo que: FICO CONTENTE de qq maneira, pois ele argumenta como quem se apruma no alto de si e sem segurança falseada faz para ganhar na vida: vivendo bem e, por conseguinte, escrevendo e mandando bem.

adorei, marcos.
vou até regurgitar os 3 kilos de carne q ingeri hj depois desse texto.
=P
 
Gostei muito dos seus argumentos. Aliás, eles sempre me fazem pensar no porquê ainda sou carnívora.
Bom, tb me veio uma outra coisa em mente, que nem tem muito haver com o vegetarianismo, mas tem a ver com a escassez de recursos a que seremos submetidos um dia desses.
Vc cita os litros de água gastos pra manter a pecuária. Juntando esse litros com aqueles gastos na produção agrícola, qto de água não exportamos, hein?
Parabéns.
 
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